Porque escrever uma crítica, é antes de tudo, dialogar com um filme.
O cinema submerso de Krzysztof Kieślowski.
O Decálogo (Dekalog, 1988/1989/1990) é uma minissérie televisiva, escrita (com ajuda de Krzysztof Piesiewicz) e dirigida pelo próprio Kieślowski em sua terra natal, a fria e indiferente Polônia, no verão e no inverno.
Elogiada por críticos (como Roger Ebert) e cineastas (como Stanley Kubrick), O Decálogo percorreu o mundo, ainda que não fosse 100% aprovada por ele, já que seu estilo é intimista e melancólico. Afugentando boa parte das pessoas.
Os médias-metragens presentes no Decálogo são adaptações livres dos Dez Mandamentos do Antigo Testamento, ou seja, não são passagens bíblicas, são adaptações da ética, da moral e da filosofia que tais mandamentos podem passar ou contradizer.
Inicialmente tratado como um projeto político, O Decálogo sofreu mudanças e acabou por tornar-se num caleidoscópio de valores. Tratando de assuntos espinhosos como: traição, morte, incesto, voyeurismo, sexo, amizade, assassinato e tantos outros.
Algo interessante ao se falar sobre O Decálogo, e também sobre Kieślowski, que prezava descaradamente fotografias originais em seus filmes, é a importância que ele deu para a trilha-sonora e para a fotografia propriamente dita de cada capítulo. O diretor polonês, que tinha em mente não dirigir a minissérie, optou por um diretor de fotografia específico em cada episódio. Em V (Não matarás) por exemplo, vemos uma fotografia esverdeada, com as bordas escuras e com sombras e seus traços predominando por todos os lados. Já em I (Amarás a Deus sobre todas as coisas), a fotografia é muito menos trabalhada e contida, focando-se em cores frias. Assim como a trilha sonora de I, calma e melancólica, com instrumentos peculiares, como uma doce flauta. Diferente de II (Não tomarás o santo nome de Deus em vão), que possui um típico piano clássico em momentos de reflexão, tristeza e nos créditos.
E como são contraditórios esses 10 mandamentos! Não vou aqui fazer o que o próprio Kieślowski não fez, julgar os mandamentos, as estórias ou seus personagens, mas apenas, dar-lhes uma direção, um ponto de vista. Em um artigo na internet da IHU On-Line, a crítica de cinema Neusa Barbosa, destaca que tal obra é também corajosa: "...os dez mandamentos encerram toda a ética da humanidade, tudo o que se precisa saber ou pensar sobre o comportamento humano? Não. Mesmo que se fizessem 20 mandamentos, 30, 50 ou 100 mandamentos, também não esgotaria, porque a vida humana é complexa. Isso que Kieślowski coloca na obra dele. A vida é mais complexa do que nossas tentativas de colocar regras nas coisas." Segue também: "... a Polônia é um país católico, de tradição católica. Mas no momento em que Kieślowski se torna cineasta, eles estão sob o regime comunista e, na verdade, escolher o Decálogo, que tem uma correspondência com os dez mandamentos cristãos, não deixa de ser uma provocação kieslowskiana. A maneira como ele aborda as situações dos filmes, em cada um deles, não é nada cristã." Pondera. A crítica de cinema, que acabo de citar, vê no cineasta algo além de ideologias filosóficas ou políticas, e sim um humanista, um diretor que colocava a moral em dúvida diante da ética. O cotidiano é o inimigo mortal de seus personagens.
Os próprios mandamentos - e é importante que diga-se isso - não estão totalmente colocados de capítulos em capítulos, são apenas segmentos, às vezes um mandamento faz sentido total no capítulo, outras vezes, abre ramos maiores e apropria-se deles.
Nas próximas letras e próximos parágrafos me proponho a relatar e analisar cada capítulo do Decálogo.
Dekalog I: Amarás a Deus sobre todas as coisas (Nie będziesz miał bogów cudzych przede mną):
Professor universitário, que acredita na razão e na força das leis da ciência, convive com seu filho de 10 anos, que está dividido entre a crença científica paterna e a fé religiosa de uma tia. Nota pessoal: 7,5/10.
Como amar Deus? Como amar algo que não sentimos espiritualmente (não..), não tocamos e não conversamos? Há tantas coisas a serem descobertas, filosofadas, construídas e desconstruídas no mundo em tão pouco tempo de vida, da nossa vida, que se torna um absurdo, uma afronta a razão ter fé.
É nesse absurdo dilema que se encontra Pavel, filho de um professor universitário que vive entre a ciência e a fé, entre o natural e o desconhecido, entre seu pai (levado pela razão) e sua tia Irena (levada pela fé). Desde que encontra um cão morto, possivelmente atropelado (uma quase imperceptível ligação com o capítulo II) é que Pavel, como toda criança um dia o faz, começa a se questionar sobre o morrer e o viver, o significado da alma e o de Deus.
É quando perde seu filho em um acidente no gelo, num erro de cálculo vindo de um calculista, que o pai de Pavel mostra seu desespero diante à igreja, derrubando com o ódio que lhe resta um altar cheio de velas acesas. A imagem que ele passava, de indiferente a Deus, se desfaz. Só nos irrita aquilo que odiamos ou amamos, difícil dizer se era o ódio pela fé até então escondida ou o simples odiar que falava pelos atos do pai de Pavel, o certo é que a indiferença não existia. Amar Deus sobre todas as coisas é impossível quando nos confrontamos com a morte de um ente querido.
Ciência x Religião também é uma questão abordada nesse primeiro capítulo cheio de camadas. O computador aparece quase como personagem que dita regras, números e principalmente exatidão. Em um discurso diário para seus alunos, o professor fala sobre a complexidade da língua e sua difícil tradução, abordando também o computador quase como um ser supremo; em outro nível, acima do nosso. Tornando a própria existência dessa tecnológica como uma afronta ao Deus bíblico.
Dekalog II: Não tomarás o santo nome de Deus em vão (Nie będziesz brał imienia Pana Boga swego nadaremno)
Grávida do amante, mulher decide abortar se o marido, gravemente enfermo, se recuperar. Nota pessoal: 6,5/10.
O filósofo esloveno Slavoj Žižek afirma que o simbólico inaugura-se com a aquisição da linguagem. Assim, sucede aquilo de que "um homem só é rei porque os seus súbditos se comportam perante ele como um rei". É a lei que estrutura toda nossa sociedade, ainda que não seja homogênea e, desse modo, igual para cada um dos indivíduos. Ora, pergunto eu, o que são os 10 mandamentos senão leis?
Dorota Geller é uma mulher que após engravidar de um amigo, vê o marido entrar em coma. Começa então a perturbar um médico, seu vizinho de apartamento, sobre suas dúvidas médicas e corporais. De um ritmo duvidoso e algumas vezes impreciso, às vezes parece sobrar tempo no capítulo II. Um dos em que eu menos fui cativado na série.
Mas é preciso lembrar que quando se trata da série Decálogo e do diretor polonês, algo nunca é óbvio ou vazio por acaso. O médico - que nunca tem o nome revelado, diferente de Deus que julga não poder tomarem seu nome em vão - entra em uma questão ética, se ele disser que o marido em coma morrerá, salvará a vida da criança, que levando isso em conta não fará um aborto, caso contrário ela o fará. Cabe ao médico a decisão da vida e da morte. O capítulo II é também rico em poesias e metáforas visuais, como por exemplo: a lebre, morta no início, dando significado ao corte brutal do coito; a abelha que escapa de um líquido e ergue-se levemente até a sobrevivência, enquanto o homem em estado de coma começa a recuperar-se. Exige uma atenção maior do espectador, o que pode ser considerado como bom ou ruim.
Dekalog III: Guardarás domingos e festas sagradas (Pamiętaj abyś dzień święty święcił)
Faz frio em Varsóvia.
O conto de um homem e uma mulher perdidos na noite, remoendo o passado e condenando o futuro. Guardarás domingos e festas sagradas é antes de tudo, uma negação. Se algo é feito aqui, é a desonra da principal festa cristã: o Natal. Na noite fria de mais um Natal polonês, Ewa e Janusz fazem muitas coisas, menos respeitar o domingo e o dia de Natal (que em 1988, ironicamente caiu em um domingo), pois o que fazem é mentir, trapacear e cometer adultério.
Ewa liga na noite de Natal para Janusz, um antigo amante, diz que seu marido (que só aparece em uma foto, já no final) está desparecido, Janusz conta uma mentira para sua família e saí à procura do marido de Ewa.
Pode parecer inocente, mas não é sobre isso que o Natal se trata, é sobre passar a véspera e a ceia com a família. E é por isso que o Dekalog III é um dos que trata mais diretamente um dos mandamentos, que não está tão nas entrelinhas como o misterioso Dekalog II. Para Ewa e seu amante, o Natal é antes de tudo ambíguo, e pior, extremamente solitário. O clima frio e a fotografia com tons de branco, que lembra muito A Igualdade é Branca do mesmo diretor, ajudam a passar da imagem do Natal algo frio e solitário. Se para alguns essa data fala sobre amor, família e felicidade (não é difícil achar filmes norte-americanos prezando isso), para outros (e quase todos os personagens neste capítulo) o Natal é só mais um dia de serviço ou de lembranças, e para alguns até mais solitário do que os dias normais. Não há no Natal o ideal que se acredita. Kieślowski nos leva a crer, que no Natal as pessoas são lembradas de que devem amar aos outros, e isso os deixa mais infelizes, já que não o fazem em época nenhuma do ano. Deveria ser uma obrigação amar os outros? Ser afetuoso? Ou precisamos ser lembrados disso, de novo, de novo e de novo?
Um destaque é a trilha sonora, que dessa vez se utiliza de temas natalinos em versões um pouco mais lentas e até sombrias.
Mas se Ewa, Janusz e sua esposa vão contra as leis de Deus - a primeira pelo egoísmo, o segundo pela mentira e a terceira por falta de amor próprio - é por que eles são como todos os outros, erráveis e complexos. O próprio Natal cristão em si é uma farsa.
Nota pessoal: 7,5/10.
Dekalog IV: Honrarás ao pai e à mãe (Czcij ojca swego i matkę swoją)
O poder de um olhar. Em uma das primeiras cenas do capítulo IV, vemos uma brincadeira aparentemente inocente entre um pai e uma filha, ela joga água quando ele se acorda, ele devolve a brincadeira enquanto pega a filha desprevenida no banho. Não fosse a evidente diferença de idade, poderíamos dizer tratar-se de uma relação: marido e mulher. No meio disso, a menina (já nos seus 20 anos, estudando teatro na cidade) que usava uma blusa branca, deixa parte do corpo aparecendo. Percebemos os olhos do pai observando o corpo já praticamente adulto da moça em um ou dois olhares trêmulos. Depois vemos ele escutando os telefonemas da filha com o namorado, até aí, tudo isso pode passar despercebido aos olhos menos atentos - e até menos maliciosos. Mas seria impossível não perceber o olhar vazio da moça diante da câmera, encanrando-a, quando o seu namorado vem visitá-la em mais uma das ausências do pai, devido uma viajem. Ela olha para o nada e é tomada por sombras, diz se sentir estranha com a falta do pai por ali, diz ao rapaz: "Você não é o centro de tudo", dando ênfase ao roteiro Freudiano do Dekalog 4.
Freud? Sim, o Complexo de Édipo, em que o filho (nesse caso uma filha) se casa com a mãe (nesse caso um pai) sem saber que ela é de fato, sua mãe. É claramente sobre isso que se trata o Dekalog IV, ainda que haja algumas subtramas. Por exemplo, a questão de que quando a filha descobre que seu pai não é seu pai biológico, passa a hostilizá-lo, levantando questionamentos do que é ou não ser pai, os laços de sangue importam mais do que o amor? Afinal, como se honrar ao pai e à mãe em tais situações? Enfim, é um capítulo pesadíssimo, mais do que o céu. Nos estudos do Complexo de Édipo, é constatado que carinhos indevidos em crianças (a filha comenta sobre os carinhos recebidos pelo pai nas costas, que chegava a fingir estar chorando para recebê-los, claramente os primeiros ritos do orgasmo), ou seja, fora de restrições horárias e relacionadas ao corpo sexualmente estimulável, ou a falta de proibições do corpo que agora se desenvolve (a filha comenta sobre os seios crescidos em que o pai negava a utilidade de um sutiã/biquíni), criam relações acima das conhecidas como pai/filha ou mãe/filho. Aqui, o primeiro caso.
O próprio Complexo de Édipo em si é muito polêmico (principalmente por tratar os homossexuais como problemáticos, como seres não resolvidos com seu pai ou sua mãe), imagine tudo isso sendo tratado de forma explícita em uma Polônia que acabava de sair do comunismo.
A jovem ainda precisa lidar com uma carta deixada por sua mãe, que claramente, tendo ela sido lida ou não, é sobre a certeza de que aquele homem não era o seu pai. Ela o queima, provavelmente como um grito a liberdade de seguir seu caminho. No final não fica explícito se a situação que os dois (interpretados maravilhosamente por Adrianna Biedrzynska e Janusz Gajos) viverão futuramente será incestuosa ou comum entre "pai" e filha. Mas espera, seria incesto? Ele não é o pai da jovem, seria uma relação entre um homem mais velho e uma moça mais nova. Espinhoso.
Nota pessoal: 9,0/10.
Dekalog V: Não matarás (Nie zabijaj) Nota pessoal: 8,0/10.
Sobre a lei que não deveria imitar a natureza, mas sim melhorá-la.
O Dekalog V, juntamente com o VI, é um dos mais famosos. Teve alguma cenas a mais e foi lançado como longa-metragem ao redor do mundo, antes mesmo de passar como um episódio do Decálogo em alguns países. No caso de Não matarás, ele funciona muito mais com seus 57 minutos. O peso e a agilidade da trama tornava-se sem gosto no filme de 1988, como quando se mistura suco em água, o sabor é diluído.
Aqui o mandamento faz mera pose, somos apresentados na vida de 3 pessoas. Um advogado, um rapaz que anda sem rumo (mas que logo mostrará que tem um objetivo) e um taxista. O advogado é um profissional promissor, cheio de ideias e sonhos que espera cumprir; o rapaz é uma pessoa sem esperança, quase como um meio-termo entre o advogado e o taxista, que se mostra frio e inescrupuloso com seus passageiros. O papel do taxista e do rapaz, irão se inverter, a vítima da sociedade que ele era até agora o fará vilão, e o taxista será resumido a mera vítima.
De certa forma, Não matarás dialoga com Laranja Mecânica de Stanley Kubrick (1971), quem é mais violento, o sistema judicial (sanguinário por si só) ou o criminoso? Não seria a violência de um o reflexo para a violência de outro? Mas afinal, seriamos tão humanos ao ponto de perdoar alguém por tal crime? Ainda que tenhamos a noção de que a violência forma o assassino (de um passado cruel) e acaba por assassiná-lo. Kieślowski trata isso de uma maneira doce, quase lírica, em uma fotografia filtrada no verde e bordando os cantos com sombras (créditos totais para Slawomir Idziak, que trabalharia novamente com o diretor e seria o responsável pela beleza visual de A Dupla Vida de Véronique), somos levados a indagar a razão moral do direito penal, dos valores da vida e também do papel do advogado. Advogado esse que vê seus sonhos, comum a quase todo iniciante, serem destruídos e não sabe lidar com isso (é dito para ele em um momento: - Você é muito sensível para este trabalho!), acredito que muitos estudantes ou até mesmo os já formados em direito se identificarão com o advogado, interpretado por Krzysztof Globisz.
Uma vez, em uma entrevista para um artigo qualquer, o diretor norte-americano David Fincher (Zodíaco e Garota Exemplar) falou sobre não fazer da violência um balé, que filmes como Irreversível de Gaspar Noé entendiam o que isso significava. E esse é uma das maiores virtudes do capítulo V do Decálogo, os dois assassinatos presentes (do assassino que depois é enforcado) são extremamente feios, brutais e até mesmo banais. Lamento muito o capítulo não ter uma cena presente no longa-metragem, em que o rapaz, ao ser enforcado pelo Estado defeca nas próprias calças; bem, se a violência deveria ser tratada como algo feio, Não matarás é um ótimo exemplo disso.
Afinal, a lei é feita como vingança pessoal ou como uma afronta a tudo o que é opressor e violento? Sabemos que a vida deve ser preservada, ainda que isso pareça um absurdo para os nossos tempos. E visto tantas guerras e assassinatos diários, limpamos a bunda com o mandamento número 5.
Dekalog VI: Não pecarás contra a castidade (Nie cudzołóż)
Nota pessoal: 7,5/10.
Possivelmente o Decálogo mais famoso, lançado também como longa-metragem em 1988 (como Não Amarás ou também, Um Pequeno Filme Sobre o Amor), Kieślowski conquistava a crítica internacional.
Diferende de Não matarás, o Dekalog VI serve melhor como um longa, ainda que assisti-lo como um episódio de 58 minutos não influencie o espectador negativamente, mas o diretor soube tapar alguns buracos no longa, deixando-o mais contundente.
Tomek é um jovem de 19 anos que mora na apartamento da mãe de um amigo, ele se acostomou, há mais de um ano, a espiar sua vizinha localizada em um prédio próximo. O que chama a atenção no capítulo VI é a solidão quase como um personagem, e a trama hitchcockiana, que é quase impossível não lembrar de Janela Indiscreta (1954). É interessante no capítulo como os papéis se invertem, o voyeur adolescente apaixonado passa de observador a observado, de perseguidor a perseguido.
O fundo do corredor onde Magda (a mulher) mora é de um vermelho chamativo, sabendo-se que o diretor adorava metáforas visuais e sabia como poucos usá-las, fica claro a intenção de representar ali a força do amor. E é ali que Tomek declara-se pela primeira vez a sua paixão, em uma cena linda, ele diz não amá-la por beijos, sexo ou qualquer outro desejo, e sim, simplesmente por amá-la. Talvez isso não tenha uma explicação. É quando ela, mulher independente mas solitária, percebe que o tempo que passou com todos aqueles outros homens foram momentos de pura solidão. Neste capítulo em especial, todos os personagens são vazios de carinho exterior, a idosa que não cria laços com o filho, o mesmo que não se importa com a mãe, o jovem solitário com tempo de sobra, entre outros.
O final do longa e do capítulo são diferentes, o do filme termina em uma compreensão lírica dos dois, aqui tudo termina em indiferença. Quando Tomek ocupa o lugar de cético do amor, e Magda de apaixonada.
Dekalog VII: Não roubarás (Nie kradnij)
Um dia na vida de Majka.
Ewa é mãe de Majka, que é mãe de Ania. Ou pelo menos, deveria ser assim. A verdade é que Majka teve uma filha ainda muito jovem, sem condições de sustentá-la. É aí que entra o autoritarismo neurótico de Ewa, que se apodera de quem seria na verdade sua neta. Aqui são as mulheres que movem o desenrolar dos fatos, os homens (como na ausente figura paterna) estão lá apenas por estarem. E Majka precisa lidar com isso, ao ouvir o choro de sua filha e ver ela ser tratada por outros braços. Tudo muito famoso na sociedade e na literatura, em geral a criança que é abandonada pelos pais, na maioria das vezes em países de terceiro mundo, por condições financeiras - ou a falta delas. Mas quando é a própria avó que o faz, se apoderando por puro egoísmo, como Kieślowski faz questão de demonstrar, tudo é levado aos sentimentos mais extremos. Tanto do público quanto dos personagens.
Ewa se apodera de sua neta como um ditador se apodera da liberdade individual de cada ser social, é mostrado em um diálogo entre pai e filha que Ewa sempre foi assim, e consequentemente, como a Psicologia muito mostra, os pais têm fator fundamental na saúde mental dos filhos. Uma influência até demente - rever capítulo IV. Uma mãe fraterna uma filha amorosa, uma mãe autoritária uma filha incerta, perdida, temerosa. Majka chora e diz não aguentar mais esconder o seu maior orgulho, a identidade de sua filha. Vai ser um dia doloroso para ela.
Nota pessoal: 8,5/10.
Dekalog VIII: Não levantarás falso testemunho (Nie mów fałszywego świadectwa przeciw bliźniemu swemu)
O passado nunca esteve tão vivo em um dos Decálogos. Principalmente o do assunto mais usado sobre o passado da Europa, a Segunda Guerra e o Nazismo. É um capítulo de extrema objetividade, assuntos que antes eram tratados de forma sensível e quase misteriosa, agora são debatidos entre professores e alunos.
Zofia é a professora de uma universidade Polonesa, que em mais um dia rotineiro encontra uma velha conhecida de Nova York, é a mais jovem Elzbieta, ela gostaria de assistir uma de suas aulas, o que Zofia não sabe é que Elzbieta faz parte do seu passado mais do que ela imagina. Nota pessoal: 8,0/10.
Elzbieta é na verdade uma judia, que no inverno europeu de 1943 é adotada por uma família católica jovem, mas que analisando melhor os fatos, desiste na última hora. A jovem do casal era na verdade, a própria Zofia, que nesse reencontro com Elzbieta, trará um tempo encoberto há muitos anos. Aqui, no Dekalog VIII, temos uma relação maior com os outros, o Dekalog I e principalmente o II, dialogam constantemente com este. A própria estória do segundo decálogo é contada por uma jovem estudante, e mais no final do capítulo, Zofia comenta que o casal (do segundo decálogo) na verdade, mora naquele prédio em que ela reside. Mostrando o que os mais atentos já perceberam, é a Varsóvia comum com suas pessoas e acontecimentos peculiares. Elzbieta então, comenta que aquele apartamento é na verdade um lugar curioso, Zofia contesta: "É como qualquer outro lugar". Onde há pessoas, há casos como os vistos na série. Não é uma ficção, é uma forma de entender a vida. O interessante aqui, é que nunca estamos distantes dos personagens, Zofia comenta que acontecimentos podem tirar o melhor e o pior de cada pessoa, é verdade.
Em certo momento, Zofia ajeita um quadro em seu apartamento, naquele dia pela noite, Elzbieta faria o mesmo, mas por algum motivo o quadro voltaria a pender para um lado. É o passado e sua carga difícil de sair de nós, o que é feito há 40 anos poderá nos alegrar ou arrefecer durante uma vida inteira. Zofia leva uma vida interessante, é professora, se alimenta bem e pratica esportes. Zofia também ajuda jovens a entenderem melhor o ser social, algo feito claramente para sobrepor aos erros antigos. Ela entende o funcionamento da vida, o peso do passado e a importância de viver bem. Sim, somos feitos de erros, e sim, eles nos moldam.
Dekalog IX: Não desejarás a mulher do próximo (Nie pożądaj żony bliźniego swego)
Nota pessoal: 8,5/10.
Sobre que o amor não é o que está entre as pernas, mas no coração.
Um marido infértil descobre que sua mulher está traindo-o com um homem bem mais jovem, depois que a semente da desconfiança é plantada, ele passa a espioná-la de todas as formas possíveis, e descobre a verdade. Nas primeiras tentativas, ele se dá por engano, vê que sua mulher não passa de uma inocente trabalhadora, mas por que continua? A grampear seus telefonemas, e afins. Talvez o ser humano queria materializar aquilo que imagina, ainda que isso lhe cause muita dor. Sofrer é antes de tudo, pior que a mentira; e a mentira, é o mesmo que sofrer. Um casal é muito mais difícil de definir do que um mandamento, como não desejar a mulher do próximo quando a biologia fala mais alto? Quando tudo pende a isso? A tentação? Deus teve seu filho mais ilustre de uma mulher virgem e comprometida com outro homem. Sua humanidade está fardada ao pecado.
Uma espécia de anjo - muito explícito nesse, no I e no capítulo VIII - aparece pela última vez nesse decálogo. Ele é um ciclista que aparece por duas vezes, em duas cenas diferentes. É interpretado pelo ator polonês Artur Barcis. Durante todos os nove capítulos anteriores, ele apenas observa, está em algumas situações importantes, aparece como desaparece. É mais um dos mistériores dessa obra-prima televisiva da Polônia.
O acaso fez parte da carreira cinematográfica de Kieślowski, e também está presente por aqui, a morte do marido no final é um exemplo disso, ulguns segundos de diferença em nossas vidas pode significar muito. Conhecer alguém, encontrar algo ou até morrer, nunca estão em nossas mãos. A esposa de Roman, Hanka precisa lidar com as consequências de seu amante quando ele decide persegui-la, Roman precisa lidar com as consequências de não pode ter filhos, de salvar vidas mas não saber lidar com a própria. Em uma questão de poucos segundos, o pior e o melhor podem acontecer para cada um deles.
Nota pessoal: 8,0/10. Dekalog X: Não desejarás os bens do próximo (Ani żadnej rzeczy, która jego jest)
Dois irmãos que há muito não se viam, após o falecimento do pai, descobrem uma fortuna em sua coleção de selos. A do materialismo, do consumo e da ganância.
Esses dois irmãos (Jerzy e Artur), que vivem vidas totalmente diferentes, não moram no mesmo condomínio onde a maioria das estórias acontecem, mas o seu falecido pai sim, e é no apartamento dele que o capítulo X se sucede. Jerzy e Artur a princípio pensam que tudo o que seu pai lhes deixou foram dívidas, mas isso é até descobrirem a importância monetária de selos antigos.
O tema central de Não desejarás os ben... é a própria cobiça. Logo após a morte do homem, aparece um antigo amigo pedindo a família que lhe pague uma dívida que o falecido tinha, e se desculpa se o momento não é oportuno. Ora, é óbvio que não é oportuno. Todos os personagens aqui são extremamente mesquinhos, trapaceiam e não se importam com sentimentos. Jerzy sabe que sua mulher pensa que ele está tendo um caso, mas nunca aparece se desculpando ou mesmo se importando com o que ela sente ou não, seu filho ganha um selo do pai que era do seu falecido avô e o vende no mesmo dia, Artur pensa em vender o aparelho que o faz ganhar a vida. Mas toda a ganância desmesurada chega ao seu ápice quando Jerzy decide vender o próprio rim. E irmão matará irmão.
Esse é o episódio final, e é nele que a estupidez humana se funde com suas invenções monetárias, o ser humano como mercado e mercador.
O que vemos na obra de Kieślowski é de grande relevância para o audiovisual e para o estudo do ser humano, assistir O Decálogo é o que todo mundo deveria fazer, como forma de compreensão de si e do mundo que nos rodeia.
Definir essa minissérie não é fácil - gosto de classificá-la como minissérie e acho mais justo, mas se alguém encontrou tais palavras, não fui eu:
"Muitos países e muitos povos viu Zaratustra. Não encontrou poder maior na terra que a obra dos ardentes;
“bem e mal”
era o seu nome."
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