Injustamente achincalhado pela expressiva maioria dos críticos e, até agora, lamentavelmente ignorado pela maioria do público, "Jupiter Ascending" é uma obra com a marca inequívoca dos Wachowski. Tal qual "Speed Racer" e "Cloud Atlas", seu completo insucesso em causar impacto positivo imediato relaciona-se, sobretudo, a preconceitos, discriminações e preguiça intelectual da supracitada massa, igualmente amorfa e alienada, dentre o público e a crítica cinematográfica neste início de século. Com “razões” que vão de um conservadorismo patético (ideológico e formal, condenando tanto sua abordagem temática libertária quanto suas experiências inovadoras no campo da montagem) a um real discurso de ódio (a insistência em mencionar a transsexualidade de Lana, ridicularizá-la e questionar suas capacidades artísticas por isso) os irmãos foram sistematicamente menosprezados desde o início da década passada, quando 'Matrix Reloaded' e 'Matrix Revolutions' falharam em corresponder às expectativas gerais.
Porém, se há um traço definidor do Cinema dos Wachowski, este é justamente a não adequação, a partida súbita rumo ao inesperado, acenando às expectativas e usando das convenções e clichês apenas para subvertê-los sem aviso, a fim de tornar aplicável a seus filmes, em seu real sentido, a expressão "experiência cinematográfica". E foi assim que, ao longo da última década, eles se consolidaram como membros do restrito grupo de cineastas americanos da geração deste início de século que satisfazem a definição de "autor" (segundo a teoria definida originalmente por François Truffault na década de 1950, isto é, abordagem sistemática de um ou vários temas correlacionados por meio de uma visão artística coesa e consistente de tal modo que se pode "enxergar" o diretor no seu filme), juntamente com Paul Thomas Anderson, Christopher Nolan, Sofia Coppola, Darren Aronofski, Wes Anderson e Spike Jonze.
E, confirmando isso, em “Jupiter Ascending” o público pode “enxergar” o cinema dos Wachowski por toda parte: como na trilogia “The Matrix”, a realidade é ilusória e ofusca uma verdade incomensurável na qual a humanidade perde o protagonismo em sua própria história; como em “Speed Racer”, o capitalismo extremado é abjeto por perturbar a harmonia na convivência familiar; como em “Cloud Atlas”, os fortes não abdicam do seu “direito” de predar os fracos, reduzindo suas existências a meros corpos cujo destino é converter-se em matéria-prima de commodities ; Sem contar o arquétipo do herói resgatando o da donzela em perigo, que de uma ou outra forma foi retratado em todas as narrativas dos cineastas (começando por Neo e Trinity; passando por V e Evey, Speed e Trixie, Chang e Sonmi; culminando neste Caine e Jupiter);
Não somente dentre aspectos temáticos, entretanto, pode-se identificar a marca inequívoca dos Wachowski, já que, nesse filme, o conhecido arrojo técnico deles se manifesta de maneira geral ao longo do filme pelo design de produção e figurino criativos e impecáveis – permitindo a criação de um universo totalmente alheio ao nosso, porém coeso e coerente internamente, encontrando ainda disposição para homenagear as mais diversas narrativas de ficção científica, em especial o pesadelo burocrático do "Brazil" de Terry Gilliam, expandido para uma escala cosmológica e contando com participação do próprio autor em uma bela homenagem -, e, sobretudo, a sequência de perseguição aérea por uma magnífica Chicago ao alvorecer.
Este incrível tour-de-force demandou o trabalho incansável e destemido de inúmeros dublês que se dependuraram de helicópteros e cabos a alturas de centenas de metros – sendo as acrobacias filmadas conjuntamente através da inovação técnica da Panocam, concebida pelo supervisor de efeitos visuais Dan Glass e pelo diretor de fotografia John Toll como um arranjo de 6 câmeras dispostas panoramicamente para captar 180° do campo de ação em uma mesma tomada, permitindo aumentar a eficiência das filmagens que tinham uma janela de apenas 15 minutos diariamente para ser realizadas com a perfeita iluminação prévia ao amanhecer. Tal dedicação e planejamento logístico possibilitou retratar fisicamente as proezas do personagem Caine Wise em seus vôos com botas anti-gravitacionais (sendo a distorção do campo gravitacional a seu redor brilhantemente representada visualmente pelos cineastas por meio da câmera lenta com extremo detalhamento dos movimentos, similar ao notável bullet-time de Matrix, tal como se o tempo passasse mais devagar no referencial do personagem), o que, de outra forma, teria de ser feito com o uso exclusivo (e alienante) de computação gráfica e recursos digitais. A sequência é um momento crucial no enredo para Jupiter por introduzi-la subitamente a um mundo vasto, empolgante e desconhecido (contrastante com sua rotina enfadonha) e é possível entender a queda de Caine e Jupiter por entre os arranha-céus da cidade como metáfora para a protagonista estar se apaixonando (falling in love – “caindo de amor”) pelo seu salvador naquele momento, sendo, portanto, compreensível o esmero dos Wachowski ao criar esse momento.
Entretanto, fosse o filme apenas ressonante com suas obras anteriores, não se justificaria a tese supracitada da ânsia da dupla em criar pinturas inovadoras sobre telas emolduradas convencionais. E isto também se verifica neste filme: se inicialmente parecia se desenhar um enredo com uma contundente mensagem anti- establishment, tal qual “V for Vendetta”, a expectativa pela subversão da (injusta) ordem vigente daquele Universo nunca é atendida e, ao final, o domínio da dinastia Abrasax permanece. E como se não bastasse, Jupiter venceu a hegemonia destes antagonistas supremos, equiparando-se aos mesmos (em título, por sua recorrência genética, e em fragilidade enquanto ser humano, ao cair das plataformas simultaneamente a Balem, magnânimo dentre os vorazes Abrasax), contudo, longe de inspirar uma revolução no Cosmos, ao final de sua jornada intergaláctica ela escolhe esconder a verdade do restante da população terrestre e aceitar seu próprio cotidiano – que ela antes tanto odiava – como válido. Tal como Dorothy em “O Mágico de Oz”, citado por Lana Wachowski como uma das inspirações temáticas fundamentais de Jupiter, a protagonista que sempre quis deixar sua opressiva realidade e vive um sonho intensamente até que ele se torna insustentável e ela precisa se conformar e encontrar beleza em seu próprio status quo. Ainda que se disponha a usufruir de sua recém-descoberta condição de nobreza para transcender pontualmente seus dias com singelos privilégios como sobrevoar a cidade ou beijar seu próprio anjo da guarda no topo do maior arranha-céu...
E é justamente a partir deste desfecho de contornos potencialmente oníricos que torna-se possível, a meu ver, delinear a interpretação mais coerente sobre o subtexto alegórico de “Jupiter Ascending”. O Destino de Jupiter foi, na verdade, muito mais amargo do que a cadeia de eventos literalmente expressa na tela levou o público a pensar. Isso porque Jupiter morreu na clínica na cirurgia de remoção de seus óvulos. Todo o restante do filme constitui um meticuloso sonho - melhor definido como devaneio de morte - de uma garota que aspirava vislumbrar a grandeza universal, mas a quem, vitimada pelas circunstâncias árduas de seu nicho social (após uma derradeira e malfadada tentativa de buscar suas aspirações), somente resta sonhar livremente com uma alternativa fantasiosa na qual ela é dotada de capacidade de ascender pelas castas de uma ordem universal.
Tal perspectiva de ilusão sistemática da narrativa pode soar radical, mas sua ousadia é justificada por diversos aspectos da trama que corroboram o caráter onírico das experiências vividas por sua protagonista. Dentre os principais, nesse sentido, estão as claras inconsistências/conveniências encontradas por Jupiter em sua jornada. Assim, tem-se, por exemplo, o fato de todos os humanos (e mutantes, e espécies alienígenas) encontrados por ela falarem igualmente inglês, mesmo que, segundo a história alternativa do filme, a origem da humanidade tenha sido a mais de 1 bilhão de anos em uma galáxia distante, o que seria absurdo. Além disso, a aparência dos alienígenas que Jupiter primeiro encontra e tentam matá-la na clínica é a mesma estabelecida no imaginário popular e na cultura de OVNIs, abrindo a possibilidade de ela estar criando o universo de seu sonho pautado em coisas conhecidas por ela. Analogamente, a forma e as variações de mistura genética dos demais alienígenas e mutantes é sempre baseada em animais da Terra, como o lobo no caso de Caine, o lagarto para os servos de Balem e as abelhas para Stinger, fortalecendo o argumento de que ela erige sua nova realidade sobre o arcabouço de sua antiga. Isso é consecutiva e sistematicamente confirmado ao longo do filme por detalhes e percepções da própria Jupiter: reconhecer que o sistema de intitulação na capital interplanetária é uma versão ainda mais burocrática do seu familiar Departamento de Trânsito; associar o senso comum da hierarquia social das abelhas em torno de um indivíduo (“abelha-rainha”) com uma suposta capacidade de reconhecer realeza; o fato de o local inóspito que abriga os domínios imponentes de Balem ser justamente na grande mancha vermelha do planeta Júpiter (super-tempestade/ aglomerado de furacões), um conhecimento astronômico difundido que a protagonista ávida pelo campo de estudo de seu saudoso pai certamente teria – e que poderia mesmo ter intrincado significado psicanalítico (se verificada a hipótese do sonho) já que o heroico e destemido Caine, contra todas as possibilidades, a resgata do turbilhão dentro de si própria (Júpiter-pessoa aflita dentro de Júpiter-planeta) em que está imersa e despencando.
No entanto, o principal argumento que justifica a hipótese do sonho é, a meu ver, uma única frase dita por Júpiter no terceiro ato em seu confronto com Balem quando ele tenta chantageá-la a ceder seus direitos em troca da segurança de sua família. “Eu estou garantindo que o que quer que você faça comigo e minha família você não possa fazer com mais ninguém.”, diz a humilde limpadora de banheiros ao arrogante Senhor do Universo. Uma fala que revela um anseio subjacente dela de ver a justiça se efetivar por via de seu sacrifício, algo absolutamente pertinente a situação hipotética de Jupiter ter morrido em consequência da extração dos seus óvulos na Clínica (meio clandestino em que situações de negligência e descaso são rotineiras e os desfechos por vezes trágicos). Em seus últimos suspiros de vida, Jupiter pode apenas almejar veladamente:
Que os traficantes de órgãos responsáveis por sua morte sejam punidos e não possam lesar outrem. Que os fortes não possam mais predar impunemente os fracos. Que apesar de a vida ser um ato de consumismo (como lembra Balem no confronto derradeiro), haja espaço para o amor sublime, encarnado pela figura do anjo – caído, mas enfim redimido - de Caine. Que a sua vida, que já se esvai, possa transcender os limites de seu corpo e sua marca persista pela eternidade, numa vindoura Era da Genética. Que, ao final, a última ambição que reste seja a de ultrapassar os próprios limites sem explorar os limites alheios. Tal como Jupiter, no epílogo de sua jornada, sobrevoando a cidade sem perturbar a benção da ignorância das vidas abaixo, pregadas ao chão. Tal como os Wachowski, embalando um conto trágico e profundo sobre a mesquinhez humana na fantasia deslumbrante e subestimada de uma space opera.
Excelente texto. Parabéns!!!
Ótimo texto, aumentou muito minhas expectativas!!! 😁
Belíssimo texto mesmo. Ainda não vi o filme e nem o coloco como prioridade. Motivo: não gosto dos Wachowski. Só acertaram em Matrix (1999) e deu. Todos os seus demais filmes são de ruins pra baixo.
Realmente, é um ótimo texto Hélio. Também acho que execraram de mais esse filme. Concordo quando você atribui isso "a preconceitos, discriminações e preguiça intelectual da supracitada massa, igualmente amorfa e alienada, dentre o público e a crítica cinematográfica neste início de século."
Mas penso que você também tenha exagerado, não só na nota, mas em algumas partes de sua análise. Principalmente a tese de que a protagonista experimentava um delírio "durante sua morte" (numa seção de retirada de óvulos???), isso não tem fundamento algum na própria narrativa fílmica, sobretudo porque a película já começa com uma cena com os extraterrestres.