Fazer um filme sobre Jesus Cristo certamente não deve ser uma tarefa fácil. Desde as primeiras Paixões de Cristo produzidas entre o final do séc. XIX e o início do séc. XX (na época do chamado Primeiro Cinema), os cineastas já lidavam com as pressões e restrições das instituições cristãs (católicas ou protestantes) na abordagem desse ícone religioso, dessa imagem sagrada e mesmo irretocável que não poderia ser profanada, desconstruída ou excessivamente dramatizada pelo filme (e de fato, boa parte dessas primeiras Paixões eram compostas por quadros quase estáticos nos quais Jesus permanecia como símbolo distante e santificado). Isso posto, é realmente admirável que um cineasta consiga produzir um retrato mais complexo e instigante dessa importante figura religiosa a partir do próprio ícone criado e tão sacramentado pelos cultos cristãos ao longo da história ocidental. Esse foi o caso de Pier Paolo Pasolini com seu belo “O Evangelho Segundo São Mateus”.
Mais especificamente, Pasolini, em sua fiel adaptação ao texto bíblico homônimo, parte do ícone sagrado para construir um retrato mais humanizado e até político do Messias, considerando e mesmo respeitando o símbolo religioso, mas também explorando o símbolo social e político que Cristo igualmente representava. O filme, na realidade, desenvolve-se a partir de uma verdadeira dialética entre o sagrado que se converte em homem e o homem que se converte em sagrado, o que não deixa de remeter à própria essência do Cristo apresentado pela Bíblia. Curiosamente, a primeira evidência disso se dá não com a figura de Cristo mas sim com a da Virgem Maria, no começo do filme, no quadro em que vemos uma jovem Maria, de vestido e manto, “emoldurada” por um arco rústico de pedra, ao estilo de uma clássica representação gótica, ainda que esse gótico seja formado pela extrema rudeza e simplicidade da residência da jovem. Ou seja, Pasolini apropria-se do ícone e o situa na materialidade bruta do mundo rústico e pobre ao qual Cristo realmente pertenceu – e além do respeito ao ícone (afinal, Pasolini aborda uma temática religiosa) há uma releitura apropriada e até mais justa do mesmo, numa bela conciliação entre a poesia do sagrado e a matéria e textura do físico (conciliação que se tornaria, de fato, uma das propostas do próprio cinema de Pasolini).
O ícone, no caso, é uma constante no longa-metragem. Voltando à Virgem Maria, sua primeira intérprete, a evocativa Margherita Caruso, apresenta os mesmos olhos glaucos e doces costumadamente atribuídos à santa, especialmente quando agraciada pelos closes da câmera, numa outra clara referência à iconologia cristã. Da mesma forma, o Cristo vivido pelo intenso Enrique Irazoqui, mesmo diferenciando-se um pouco do costumeiro retrato cristão, também remete ao Jesus dos ícones e múltiplos retratos da Igreja, sobretudo quando coloca o manto escuro sobre sua cabeça. E se em algumas passagens temos um belo contra plongée que contrapõe Cristo ao intenso e místico brilho do sol (que culmina quase numa auréola dourada), deve-se mencionar até a sutil presença de moscas em certos planos do filme (inseto, no caso, considerado um presságio de morte e, por essa simbologia, tantas vezes evocado em representações pictóricas clássicas do Messias). Naturalmente, apesar do peso desse ícone, Pasolini enxerga o homem. Embora, em suas tantas pregações, discursos e ensinamentos, Jesus se apresente quase que exclusivamente sob a faceta séria ou serena do ícone, em pontuais passagens vislumbramos as inseguranças e mesmo vulnerabilidades e frustrações do homem por detrás do santo – e um belo exemplo disso é a despedida de Cristo da casa de Maria, quando a câmera, em um breve primeiro plano, nos permite ver a sutil lágrima que escorre da expressão ainda fechada e sóbria de Irazoqui.
Da mesma forma, se em dada passagem Cristo chega a francamente se irritar com um povo que parece se concentrar apenas nos seus feitos miraculosos e não em sua pregação, é evidente sua particular revolta contra a hipocrisia e ganância dos fariseus em seu inflamado discurso contra os mesmos. Mas é a partir da humanidade de Cristo que Pasolini afirma o papel político e social do Messias. No começo do filme vemos os três reis magos chegando a Jerusalém sob seus imponentes cavalos, e mesmo se juntando à massa popular da cidade os três ainda se sobressaem a essa massa pela altitude da montaria. Mais à frente, Cristo chega a Jerusalém montado em um jumentinho, e mesmo com os humildes festejos de sua chegada, o Messias se mistura com a multidão. Ou seja, em oposição às autoridades que se separam da massa, Cristo se dirige à massa, une-se a ela. Em oposição às autoridades, políticas e religiosas, que negam o povo, Cristo deseja o povo, dialoga e confraterniza-se com ele, e Pasolini sabe representar tanto a singularidade política de Cristo quanto a subversão que essa nova atitude acaba representando. Antes de Cristo, o povo é vislumbrado em planos gerais, planos de conjunto ou planos médios que capturam a massa anônima e quase abstrata dessa multidão. Apenas as autoridades como Herodes, os reis magos, os soldados e os fariseus possuem direito ao close.
Na presença de Cristo há uma inversão: o close volta-se às figuras simples e humildes do povo, à espontaneidade de suas emoções, gestos e olhares (e isso, inclusive, mesmo com o Cristo ainda presente no ventre de Maria, suficiente para os closes iniciais nas humildes figuras de Maria e José). Ou seja, é a partir do Cristo que a câmera realista de Pasolini estabelece um contato com os anônimos da massa, igualmente revelando a humanidade dos mesmos a partir das nuances e poros ressaltados pelo close (e são maravilhosos os gestos espontâneos capturados dos coadjuvantes amadores, como a criança que segura o riso perante a série encenação e filmagem que está presenciando). Não que o Cristo, em sua posição de autoridade religiosa, não seja observado pelo close. Pelo contrário: durante as pregações mais incisivas do Messias, a câmera lhe concede o devido enfoque por meio de primeiros planos ou primeiríssimos planos – e nisso se inclui a sequência em que uma série de primeiros planos, todos autônomos, nos introduz a alguns dos primeiros ensinamentos de Jesus. É por esses closes, inclusive, que o filme celebra o evangelho de seu título, dirigindo nossa atenção ao discurso do Messias na medida em que apenas este ocupa quase a totalidade do quadro (embora a mesma imagem ainda contenha sutilezas “externas” como o plongeé que estrategicamente “rebaixa” Cristo enquanto este fala sobre o fiel que se sujeita à violência do inimigo devido sua confiança na força e na justiça do divino).
No entanto, o mesmo Cristo não hesita em igualmente se distanciar dessa câmera, mergulhando na profundidade do quadro para se misturar às multidões (oposto, por exemplo, ao Herodes do começo do filme que se aproxima da câmera para se afastar do conjunto de sábios que ali estão para o atenderem). Esse distanciamento voluntário culmina em passagens como a do sermão da montanha, na qual, após um panorama na vasta paisagem montanhosa, a câmera se aproxima gradativamente de um Cristo situado no alto da montanha, extremamente longe de nossa visão e tão diminuto quanto o povo para o qual se dirige (e nessa aproximação, efetuada por cortes, vislumbramos primeiro a multidão que se aproxima do cume da montanha para finalmente encontrarmos o Cristo). Menção seja feita, por fim, a outro sermão, dessa vez em Jerusalém, durante o qual uma tomada externa captura a vasta multidão do evento, provocando nosso olhar a procurar Jesus em meio a tanta gente. Ou seja, Pasolini “dissolve” Jesus entre essa massa de miseráveis e proscritos, integrando o ícone sagrado ao calor e anonimato desse conjunto de atentos ouvintes e possíveis fiéis.
Mas se Pasolini, a princípio, vislumbra a perspectiva de um Cristo que se dirige ao povo, após a subversão do Messias, o cineasta acaba fazendo o oposto, concedendo sua câmera à massa que agora se dirige ao Messias. Isso é evidente na cena da condenação de Cristo após a omissão de Pôncio Pilatos. A câmera acompanha o episódio de longe, na perspectiva do apóstolo que assiste à cena junto com a multidão – e os únicos closes dessa passagem concentram-se não na figura sofrida e trágica de Jesus Cristo (como nos clássicos filmes do gênero), mas sim nos olhos desolados do apóstolo que vê o sofrimento de seu mestre. Da mesma forma, na cena da crucificação não vemos a agonia do Cristo crucificado, mas a agonia de Maria, a mãe cujo intenso sofrimento é o verdadeiro protagonista da cena (e é tocante o trabalho de montagem que intercala o filho forçado a permanecer de pé na tortura da cruz e a mãe que não consegue ficar de pé ao ver o martírio do filho). Além disso, na mesma cena da crucificação também acompanhamos a agonia não do Cristo pregado na cruz mas a do ladrão sendo perfurado pelos pregos, com a câmera se aproximando do homem que grita de dor (de Cristo vemos apenas a mão já pregada e ouvimos um breve grito, sem maiores closes).
É nesse ponto, portanto, que o povo torna-se o protagonista do filme. Jesus torna-se uma figura distante da própria câmera na medida em que se torna um mártir, ao passo que o povo torna-se a definitiva autoridade agraciada pelo close ou pelo primeiro plano. O Messias concede a autoridade de sua imagem ao povo, o qual, distante de seu mártir crucificado, deverá mantê-lo junto de si a partir da fé em sua palavra e em sua divindade. Assim, chegamos a um corte abrupto que nos leva ao quadro escuro em que ouvimos a fala de Cristo sobre o povo cujos olhos e ouvidos normais não compreendem, percebem ou escutam o que deve ser captado – ou seja, a fala de Cristo sobre a necessidade da fé, essa fé agora necessária para a manutenção do legado do Messias, agora morto na cruz. Portanto, não temos apenas um Jesus que se dirige ao povo. Temos um Jesus que, ao menos no plano terrestre, se afirma como Cristo a partir da fé desse povo, e isso já era belamente simbolizado no começo do filme, quando, após o menino Jesus abraçar José, seu pai na Terra, a montagem nos levava à sequência do batizado de João Batista. Ou seja, é ao abraçar a humanidade, ao unir-se ao homem, que a carne se tornou espírito e o homem se tornou ícone.
É dessa forma que Pasolini nos mostra que o ícone pertence ao povo. Foi a partir da fé de uma massa, por esse ícone tão agraciada e valorizada, que o símbolo ganhou e continua ganhando força e vitalidade. É por isso que o cineasta detém-se tanto no discurso de Cristo contra os fariseus: a fé não pertence às instituições (hipócritas na maior parte do tempo), mas sim à massa, ao povo, humilde e carente, que cultua suas imagens, lê seus livros sagrados, reúne-se em suas comunidades de oração. É a partir da fé do povo que o ícone torna-se sagrado e Pasolini não só reconhece isso como restitui esse ícone ao domínio popular, vislumbrando sua materialidade, textura e humanidade - em suma, vislumbrando que Jesus está com o povo. Portanto, na ressurreição de Jesus vemos primeiramente o povo correndo, alegre e quase em êxtase, em direção ao seu amado Cristo. A despeito dos belos temas eruditos tocados ao longo da projeção, a trilha sonora elege como seu tema principal um exaltado cântico de Missa Luba (Missa baseada em canções tradicionais do Congo), composto por uma diversidade de alegres vozes. O Cristo dá voz ao povo e o povo dá voz ao Cristo; o ícone torna-se homem e o homem torna-se ícone e talvez seja essa a comunhão celebrada pelo Evangelho – o Evangelho que Pasolini soube tão belamente abordar.
Adendo: Sinto-me na necessidade de falar um pouco sobre o papel da mulher em “O Evangelho Segundo São Mateus”. Infelizmente, Pasolini não concede tanta ênfase às figuras femininas da vida de Jesus Cristo (no filme, por exemplo, não vemos Maria Madalena), e isso provavelmente se deve ao evangelho específico que o cineasta decidiu adaptar para a tela (infelizmente desconheço se o Evangelho de São Mateus aborda Maria Madalena e as demais mulheres). No entanto, mesmo com essa aparição limitada da mulher, o filme possui uma enorme sensibilidade em relação à figura feminina, sobretudo a Virgem Maria. Além dos olhos glaucos de Margherita Caruso, Pasolini captura até a famosa misericórdia da Virgem em relação aos necessitados.
Na cena em que Maria e José devem fugir para o Egito por conta da fúria de Herodes, Maria é a única que olha para atrás; não apenas para o casebre que ela e o marido estão abandonando, mas também para os meninos que os observam, os meninos que em breve serão assassinados pelas tropas de Herodes por conta do nascimento do Cristo. Além disso, é Maria a protagonista de uma bela rima narrativa. Se no começo do filme a Virgem observa um José que vai embora pela longa estrada à frente da casa (e que retornará em breve após descobrir a real natureza da gravidez da esposa), mais a frente Maria, mais velha, observa Jesus e seus discípulos indo embora na mesma longa estrada – mas ao contrário de José, Jesus jamais voltará (e mãe e filho sabem disso e sofrem por isso). No mais, é Maria a verdadeira protagonista da cena da crucificação bem como é Maria a receptora da mensagem do anjo da ressurreição do Cristo.
Considerando, portanto, o papel da matriarca (bem como de outras personagens femininas da narrativa), pode-se concluir que Pasolini ainda confere sutil e bela ênfase à mulher na vida do Cristo, mesmo com a aparição limitada desta perante a totalidade da adaptação bíblica.
Parabéns Luís, baita texto!!!
Não tiro uma vírgula e enriqueceu a minha interpretação do filme