O EXORCISTA:
“O mais assustador filme já feito”. Muitos dos cinéfilos ao redor do mundo descrevem O EXOCISTA com estas palavras. Mas o que faz com que nove entre dez apreciadores de cinema afirmem com tanta certeza que este filme é o mais assustador? Talvez a resposta esteja no contexto histórico e cultural no qual ele se apresenta e, mais importante, no conceito de gênero “terror” que se tem atualmente.
Mas vamos aos poucos. Antes de qualquer coisa, O EXORCISTA é, sim, o filme mais assustador de todos os tempos. A criação de um clima cada vez mais instável e ameaçador orquestrado com grande maestria por William Friedkin é capaz de arrepiar a espinha de qualquer um que se aventure a entrar na lógica narrativa e visual da obra, independente de acreditar ou não em forças sobrenaturais. Outro ponto: as fantásticas interpretações de Linda Blair, Jason Miller, Ellen Burstyn e Max Von Sydow são peças fundamentais para a potencialização da atmosfera desesperadora do filme.
A direção severa de Friedkin, onde Ellen Burstyn sofre até hoje com um problema sério nas costas, faz com que o filme seja um dos mais afiados da década de 70, alfinetando a fragilidade da fé, ao mesmo tempo em que exalta a mitologia cristã nos seus valores históricos milenares. Vale apontar também que a fotografia (igual importância dada aos figurinos e ao design de produção) é elemento essencial para estabelecer o clima do filme, como no primeiríssimo plano nos olhos verdes de Regan ao mesmo tempo em que funde com a imagem icônica de Merrin parado em frente ao lar da garota, que originou o cartaz do filme.
Mas falar de O EXORCISTA implica em falar do som. O design sonoro é um dos mais impressionantes trabalhos já feitos no gênero e o Oscar para Robert Knudson e Christopher Newman foi mais do que merecido (em uma época em que o Oscar optava por premiar obras artisticamente ricas). A trilha sonora é inquietante, apresentando seu tema principal de maneira discreta e por pouco tempo, o que mostra a habilidade da equipe em expor sons diegéticos na maior parte do tempo, intensificando nosso mergulho naquele universo.
E, a partir do próximo parágrafo, pretendo discutir pontos específicos da trama. Se não quiser ter surpresas estragadas, não leia. Avisado.
SPOILER
Existe uma série de apontamentos visuais em relação ao roteiro. Primeiro, a constante presença de cruzes ao longo do filme. Se em alguns momentos essa presença é descarada, como o crucifixo debaixo do travesseiro (que aparece invertido no quadro em plano-detalhe, aliás) ou o momento em que o Padre Karras está isolado em um ponto de luz em seu quarto e vemos uma cruz isolada na parede do lado oposto do quadro em outro ponto de luz (quadro magnífico este!), apontando a idéia de sacrifício e redenção do personagem, em outros momentos esses crucifixos são subentendidos, como no momento em que a pequena Regan está realizando um exame extremamente torturante e, ao apagarem as luzes do laboratório, fica desenhado na testa da garota uma assustadora cruz com luz vermelha ao fundo (além de a garota, já abertamente possuída, estar amarrada na cama ou levitando com os braços abertos, imagem que remete a Cristo).
Friedkin também opta por constante profundidade de campo grande, o que diminui os personagens nos ambientes retratados. Se Damien Karras, Chris e Regan são diminuídos e fragilizados dentro da casa ou andando pelas ruas sujas e pesadas de Georgetown, o Padre Merrin de Max Von Sydow fica pequeno e frágil diante do imenso e calorento amarelo, quase infernal, do deserto onde se localiza a escavação. Aliás, a idéia de começar a narrativa em uma escavação arqueológica é genial, já que remete ao mito atemporal sobre a luta do bem contra o mal. O enquadramento maravilhoso que introduz os dois elementos que irão batalhar na narrativa é perfeito. Banhados por um sol infernal, ao som de notas dissonantes e cachorros brigando e rosnando ferozmente, o Padre Merrin encontra seu rival e o encara com temor e coragem: o ídolo demoníaco – e é muito forte encaixar Merrin na posição de ídolo, igualando-o ao seu rival maligno, como se fossem o próprio Deus e o próprio Diabo se encarando desde tempos imemoriais.
Vale apontar também a riquíssima lógica visual adotada para o Padre Karras. Em alguns pontos específicos da trama, Friedkin o enquadra “ascendendo”, ou seja, escalado para um ambiente superior, como o Salvador ascende aos céus, segundo as escrituras. Em determinado momento, por exemplo, vemos Karras se destacando (e crescendo em nível) no quadro e se descolando da multidão (a cena da gravação do filme). Em outro momento, temos uma cena de manifestação horrorosa do demônio dentro de Regan para, logo em seguida, cortar para uma contraluz maravilhosa na linha do horizonte onde Karras surge e se ergue, transformando-o quase em uma figura mitológica. Mas o meu momento favorito é quando, já no final do filme, Karras está esgotado pelo remorso e pelos questionamentos existenciais (ele é padre e, ao mesmo tempo, psiquiatra), e ouve uma pergunta de Chris, sutilmente cheia de dor e desesperança (Ellen Burstyn é excelente!). Neste momento Jason Miller brilha ao retratar Karras entendendo e, mais importante, aceitando sua missão, “ascendendo” em toda sua excelência e subindo as escadas para encarar seu destino como salvador da pequena Regan. O quadro que se forma, com Chris à direita inferior, com as mãos quase em posição de prece, e Karras subindo lentamente os degraus, remete aos grandes exemplares da história da arte sacra.
FIM DO SPOILER
Agora, por que este filme é o “mais assustador de todos os tempos”?
É preciso um pouco de contexto para se responder e, consequentemente, compreender esta colocação. O gênero de terror, na época do lançamento do filme, busca deslocar as sensações do espectador. É uma ferramenta de experienciação extrema no campo da sensibilidade e imaginação das pessoas. Grandes contos de terror são capazes de assustar, mesmo que revisitados. O público vinha do impacto atmosférico de filmes como O BEBÊ DE ROSEMARY, que optavam por ocultar o antagonista, intensificando ainda mais a incerteza do protagonista e, consequentemente, do espectador.
Hoje em dia o terror se tornou um gênero pasteurizado e banalizado por roteiros e personagens rasos, o que não ocorre em O EXORCISTA. Os seres humanos que são apresentados e cruelmente dissecados por William Friedkin em seu filme são complexos, tridimensionais, instáveis, frágeis, etc. São pessoas que criam um elo de identificação com quem assiste, fazendo com que nos importemos com seus destinos. Um excelente filme de terror é, antes de tudo, um excelente drama. Não há identificação possível para qualquer um que assista uma personagem banal, burra e completamente vazia de personalidade – nesses casos, a sua morte não será sentida. Em casos mais extremos (como a série JOGOS MORTAIS), a violência se torna apenas um elemento de angustia visual, totalmente desprovida de sentimento e recheada de mau gosto em suas escolhas visuais e sonoras. O que vinte minutos de HALLOWEEN alcança, jamais será sequer resvalado por filmes mal desenvolvidos como O ALBERGUE, ainda que usem e abusem de cenas de violência.
Talvez o mais famoso filme do cineasta, O EXORCISTA é o filme mais assustador de todos os tempos justamente por isso. Uma história angustiante, terrivelmente assustadora no que se refere à ocultação dos elementos antagonistas e a uma atmosfera terrivelmente sombria, com personagens amargurados e melancólicos, e com a competência técnica e artística de profissionais do cinema capitaneados pelo olhar pungente, instigante e extremamente rico e pela mão pesada de um dos maiores e mais polêmicos cineastas do nosso tempo: o grande WILLIAM FRIEDKIN. E, curiosamente, é um filme bem otimista por causa de seu final.
OBRA-PRIMA.
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