O Exorcista, por Paulo Esteves *
Assistir aos filmes de terror que a História do Cinema (que parece não simpatizar muito com o género Terror) teve a gentileza de marcar como clássicos é algo traiçoeiro. É como o paradoxo do ouriço: uma pessoa quer, mas ao mesmo tempo não quer. Assim como o ouriço quer que os outros ouriços se aproximem mais para ter menos frio, também não quer ser picado por eles. No caso dos clássicos de terror, claro que um fã de terror os quer ver; são os clássicos, não podem faltar! É certo que no terror há muitos "underdogs" que merecem atenção (veja-se Animais em Fúria, por exemplo), mas os clássicos são aquela coisa. Portanto, quando finalmente vemos um clássico do terror, estamos a reduzir a lista de clássicos do terror que temos para ver. Uma lista que se reduz muito depressa. Desagradavelmente depressa.
E é também por isto que custa descobrir que O Exorcista, possivelmente o mais famoso clássico de terror da lista, é tão fraco.
Isto quase soa a heresia. Afinal, O Exorcista é um terror tão consensual que até o Óscar se "rendeu" a ele e o encheu de indicações, enquanto filmes mais merecedores como Carrie - A Estranha, Pânico, A Hora do Pesadelo e até o decepcionante Sexta-Feira 13 ficaram a ver navios. E é essa discrepância que eu não compreendo bem. Quer dizer, é verdade que O Exorcista tem um bom elenco com boas performances, mas fora isto, o filme de Friedkin revela-se um filme bem fraco. Nesta análise, inevitavelmente, vou focar-me nas supostas falhas deste filme. O que é meio injusto, porque ele também tem qualidades. Mas aquilo de que me lembro mais claramente são as desvantagens - o que é compreensível, pelo facto de ter sentido uma grande decepção ao vê-lo. Então, vejamos.
Creio que o principal problema do filme é estar sempre a misturar-se com a religião. Isso, de certa forma, tira-lhe o terror. É um pouco difícil descrever porquê, mas pode-se tentar. Seja como for, a mistura com a religião pode, de facto, tornar o filme mais assustador, mas não foi esse o meu caso. Bem, a questão é que, na nossa cultura, muitos de nós já conheciam vagamente a história da Bíblia na idade em que vimos O Exorcista. E já passámos por uma valente sensação de puro terror ao imaginar o inferno. E ao imaginar que podíamos ir lá parar. É um susto que, em vários casos, nos persegue um pouco por toda a vida. Porém, cada um lida com isso à sua maneira. A questão é que algumas pessoas se "tornam" ateias (o que não é numa forma de lidar com o medo, é apenas uma conclusão tirada por um raciocínio lógico. Assim como tornar-se cristão.). Ora, se a pessoa que vê este filme é ateia, que terror traz a possessão diabólica de Regan? Muito pouco. Porque nós, humanos, estamos meio habituados a pensar que, se o diabo existe, então Deus também existe. E isso não é necessariamente assustador. Até pode ser reconfortante. Também pode assustar, mas isso é se o espectador começar a temer novamente o julgamento de Deus. Mas, aí, começa a pensar novamente em se a Bíblia é de confiança ou não. E eu pergunto: é assim que o filme quer assustar? Fazendo-nos pensar numa questão assustadora com que vivemos praticamente toda a vida? Um assunto em que pensamos bastante e para o qual o filme praticamente não contribui? Ou quererá o filme, em vez disso, assustar ao mostrar-nos o que o diabo pode fazer se vem à Terra?
Aqui é que está o problema. É mais provável que o filme queira mostrar o terror de uma possessão sobrenatural. Pois sim, grande terror...no fim de contas, aquele que pretende ser o próprio diabo acaba por não mostrar grande poder destrutivo. Deixa os seus actos ficar por um modesto quarto de criança. Não vai além disso. Ui, que medo...não sei como o resto do mundo vai conseguir dormir. Afinal de contas, o poder do diabo não é assim tão grande. Além disso, manifesta-se em coisas meio banais, como vómito. Claro que é um vómito sobrenatural, pois ninguém consegue deitar tanto fora. Mas, sobrenatural ou não, continua a ser vómito. Comida regurgitada. É nojento e cheira mal. Isso não é assustador; é só grotesco. Há uma razão pela qual o vómito é por vezes usado em comédias para efeitos cómicos; o vómito é grotesco. E o grotesco, por vezes, tem graça. Veja-se o caso do...bem, digamos...do "pum". É grotesco, sim...mas pode fazer rir. Aliás, sou capaz de apostar que, na famosa cena do vómito exagerado, se Regan deitasse substâncias não da boca, mas sim do traseiro...bem, aposto que metade da audiência se partia a rir e não levaria a cena a sério. As substâncias escatológicas não são material para terror. São só nojentas.
No fim de contas, a melhor maneira de nos assustarmos com a possessão não é verificar o poder do diabo, mas sim fingir que somos a mãe de Regan e assustarmo-nos ao ver o que acontece à nossa filha. Mas isto é um pouco rebuscado para um filme de terror. Voltando...tudo isto piora quando o padre Merrin vem tratar de Regan. Chega-se ao dito exorcismo e vê-se que ele consiste maioritariamente...numa espécie de orações! Que tipo de solução é essa? Pode ser a única para Regan, mas para um filme de terror não presta. É uma solução pouco perigosa e que não exige esforço por aí além. Ou seja...não é como nos terrores comuns em que as personagens têm de ganhar coragem e enfrentar e/ou tentar matar o monstro. Mas agora, quê, a solução é rezar? Isso não cria tensão nenhuma. Se num filme de terror alguém se pode livrar do monstro proferindo umas palavrinhas, onde está o terror? Umas palavras saídas da boca e o vilão ficou menos perigoso. Assim, não há vulnerabilidade. Não há dominância do vilão sobre os protagonistas. Não há uma ameça digna do nome. Não há...não há...terror, pronto!
E foi tudo isto que me fez perder a paciência à quarta ou quinta vez que os padres disseram "The power of Christ compels you!". Aquela solução já era fajuta para um terror, e repetida assim, a cena tornou-se maçadora. E por falar em terror, passemos para outro problema: o filme não segue o ambiente do seu poster. Se o filme tivesse seguido o ambiente do seu poster, isto é, uma casa numa avenida escura, com pouca iluminação e cercada por um silêncio mortal enquanto um vulto misterioso se aproxima de lá, O Exorcista podia ter sido uma das coisas mais assustadoras que já se fizeram. Mas não foi, infelizmente. Já me queixei do excesso de iluminação nos filmes de terror dos anos 70 na minha lupinha para A Hora do Pesadelo. Pois bem, este filme também sofre disso. E enquanto Freddy Krueger costumava esperar pela noite, este nem isso faz. A primeira parte da cena em que Regan vai para cima e para baixo na cama em pleno dia é o melhor exemplo. Aquilo mal mete medo. Há demasiada luz. Não há nenhum mistério para o espectador, pois não há escuridão. Toda a gente vê claramente o que está a acontecer: Regan a ser elevada na cama de uma maneira estranha. É certamente assustador para ela e para a sua mãe, mas o espectador...bem, para quem ia ver um filme sobre possessão diabólica, ver uma criança a "saltar" na cama em plena luz do dia (quando se percebe que há claramente um ser invisível a manipular a criança) é muito menos do que se poderia esperar. É isso o poder diabólico? Fazer uma criança saltar, magoando-se pouco, numa altura do dia em que os humanos têm menos medo? Enfim...toda essa cena é sofrível pela falta de construção de ambiente de terror e pela luz em excesso.
Creio que estes dois problemas são o que mais prejudica o filme e o impede de assustar como deve ser. Depois há mais uma ou duas coisas que me incomodaram. Como a falta de esforço para ligar o prólogo com o principal da acção. Ou a maneira como a mãe de Regan passou a preocupar-se muito com a sua filha. Como ficou apreensiva perto dela por causa do que parecia coisa pouca. Quer dizer, antes da cena em que a sua cama é abanada, que razões teve ela para pensar que a filha não estava bem? Que fez ela? Apareceu no meio da festa e disse um disparate? Qualquer criança faz isso. Fez xixi no chão? Grande coisa, as crianças nem ligam muito ao xixi. Disse palavrões?! Deve estar a gozar...enfim, ver Chris tão apreensiva em relação à sua filha durante a cena da festa e pouco depois traz-me à mente a famosa frase de Will Ferrell, usada para parodiar filmes que não desenvolvem suficientemente as suas situações: "Boy, that escalated quickly!". Creio que essa paródia é o ideal para expressar o quanto eu achei um exagero a postura de Chris. Mas atenção: eu não sei se esta sensação se deveu à possibilidade de eu ter visto a versão reduzida - menos 10 minutos - do filme. Mas foi realmente o que senti: uma escalada rápida.
E é assim que um filme com potencial acaba por se revelar como que uma fraude. Sabendo que um filme de terror alguma vez seria indicado ao Óscar e, inclusive, ganharia prémios, preferia de longe que essa honra não tivesse ido para O Exorcista, pois se um terror fosse representar o género Terror no Óscar, esse devia ter sido um melhor exemplo. Carrie - A Estranha, por exemplo, seria um muito melhor representante do género a vencer Melhor Filme. Além de também merecer Melhor Direcção e, possivelmente, Melhor Actriz.
* - Paulo Esteves escreve segundo a ortografia antiga. Ainda tenho de me ambientar mais com o novo acordo ortográfico...
Como assisto filmes neste site?😠
Paulo acredito que sua análise está meio equivocada e um pouco confusa, o filme é muito bom sim, possui muito mais qualidades do que defeitos, praticamente inaugurou um gênero, e marcou definitivamente a história do cinema, você pode não gostar, eu até entendo, mas deve reconhecer o valor e a importância da obra.
Não chego a me considerar ateu, mas sim uma pessoa que ignora a religião. Nunca pisei numa igreja que não para um casamento e jamais li qualquer trecho da bíblia que fosse além da capa. Mas isso não me impediu de sentir medo com este filme. Acho possível alguém não gostar deste ou de qualquer outro filme tido como clássico. O que nos traz qualquer tipo de sentimento ao assistir um filme é a nossa disponibilidade de entregarmo-nos a sua estória e a atmosfera criada pelo diretor e nossa interação com os personagens. E isso o filme de Friedkin, assim como o seu cinema como um todo, tem de sobra.
Haha, não esperava nada que o comentário gerasse tanta "polémica", vá, ainda antes de ser aprovado!😁 Quem diria...
Luiz: Sim, o cinema pode e deve ser isso. É só que, pelo exorcismo, o filme como que deixa implícito que, além do diabo, Deus também existe. E isso, repito, não é necessariamente assustador. Até pode confortar. Tipo: "Ah, deixa para lá; Deus está a testar os humanos mais uma vez. Regan vai ficar bem no final."
Marcos: Eu reconheço a importância da obra. Aliás, muito lhe agradeço por representar o género Terror no Óscar. E por, eventualmente, contribuir para que muitas pessoas no mundo olhem para o terror com seriedade, não apenas como um género secundário. Já quanto a reconhecer valor...bem...🙄
É aquela coisa: não encontrei muito valor no filme. Quase não me assustei, quase nunca me senti tenso com ele...e acho que Friedkin também não ajudou à construção de uma atmosfera assustadora.