Se o cinema é feito de esperança, além de atores, de uma câmera, um roteiro.. O Filme da Minha Vida, filmado na Serra Gaúcha (em cidades como Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul), sairia como um filme completo daquilo que é a essência do cinema. O que seriam dos filmes de Spielberg sem o heroísmo típico de um indivíduo lutando contra algo maior do que ele mesmo? Seja o Elliot de E.T. (1982) ou o histórico Oskar Schindler de Schindler's List (1993), ambos indivíduos pequenos, cheios de problemas pessoais, mas enfrentando um Estado inteiro, ou mesmo problemas de outra galáxia, como no caso do primeiro. O medo de se ser quem é nunca é maior da esperança de enfrentar-se e enfrentar o mundo exterior. Ainda que não fale diretamente sobre a esperança, ela é o núcleo de cada personagem que Selton Mello propôs em sua trama, do filho que espera o pai, do pai que espera o filho, da garota que espera o garoto que espera a garota..
Porque o ser humano, de diferentes maneiras, também é movido por um núcleo próprio de esperança. E o mais bonito, dentro e fora do filme, é ver o amor que seu diretor possui pelo que está fazendo. Selton, do interior de Minas Gerais para o Brasil, parece incansável ao percorrer cada capital e cada possível metrópole deste país, em busca de um sonho, de que o cinema nacional brasileiro tenha destaque, tenha protagonismo ao contar boas estórias. Seu esforço em estar ao mesmo dia em lugares diferentes, assim como a sua capacidade em se emocionar com as cenas que tantas vezes deve ter gravado exaustivamente, mostram um apelo tocante pela sétima arte. Além da técnica, que também está presente em O Filme da Minha Vida, o sentimento, por mais frio que um filme tente ser, nunca pode ser tolerado em escapar de um realizador. Em determinado momento, Paco (o personagem vivido pelo diretor) se refere ao cinema como "Uma sala escura onde as pessoas não fazem nada além de espiar à vida dos outros", e é interessante ver que o personagem de Selton não se encontra com o artista Selton, no sentido em que é realmente uma interpretação, quase ao avesso daquilo que pensa o agora realizador mineiro. Este amor que sente o artista Selton Mello, pelo mesmo que sente este que aqui escreve, não deve ser desmerecido pelos cinéfilos que tanto existem neste país, porque é sempre louvável quando se entrega um trabalho artístico não só pelo comercial, mas também pelo amor que a sua mensagem pode trazer - talvez o desejo mais pela consequência da mensagem do que per se.
"Um filme que faz sonhar em tempos estranhos", é como vem sendo vendido a imagem do terceiro filme do famoso ator brasileiro, novamente por trás das câmeras. E é, a adaptação baseada no livro de Antonio Skármeta provoca risos espontâneos com almas delicadas, como a prostituta Camélia (Martha Nowill), e provoca desconforto emocional com um homem marcado pelas cicatrizes do passado, como o pai de Tony Terranova (Johnny Massaro), Nicolas Terranova (Vincent Cassel). E ambos, pai e filho, descobrirão que estavam entregues a uma parte muito mesquinha da alma humana, como a cobiça e a inveja, ao ponto de separar uma família e destroçá-la no decorrer da linha do tempo. E é esta alternância entre comicidade e drama pesado a força maior de O Filme da Minha Vida, algo tão comum em filmes de Fellini e também no mundo circense, que Selton mostrou conhecer tão bem em seu filme anterior, porque identifica o espectador em personagens ambíguos: a prostituta que domina um conhecimento escolar, o tiozão legal que pode não ser tão legal assim, a modelo famosa e reconhecida que sofre de insegurança e a garota sonhadora dos cabelos vermelhos que resiste a tristeza quando ninguém mais parece resistir. Não é por acaso que o timing onírico vem sendo tão comentado no Brasil de 2017, poucas produções brasileiras até hoje procuraram tanto desenvolver a fotografia àquilo que o espectador mais comum pode não estar acostumado e buscaram inseri-lá em um mundo tão particular - ainda que extremamente palpável. Em entrevista a filial da Globo no Rio Grande do Sul, o diretor comentara que a Serra Gaúcha parece aos estrangeiros como um universo à parte, quase dizendo que o Brasil precisa buscar seus universos particulares novamente para se redescobrir, resgatar e ressurgir com aquilo que tem, e não daquilo que sobrou. O que sobra são pedaços, e é mais bonito olhar para um país com suas diferenças culturais tornando-a universal, ainda que única, na Serra, do que usar dessas mesmas particularidades regionais para se sobrepor a outras.
Nem tudo é tão bem explicado quanto deveria, e é uma dificuldade de qualquer ser humano que se proponha a dirigir um filme encontrará, afinal, como entregar o suficiente sem estragar tudo? Qual o limite entre o filme bem explicado e o didatismo exagerado? O próprio cinema norte-americano, o mais famoso e bem equipado do mundo, sofre deste problema atualmente. Não que aqui seja o caso de um filme de lacunas grandes, a edição é precisa na hora de apresentar a vida de um jovem que logo se torna professor em sua querida terra natal, mas não o é em apresentar fatos mais importantes. O lado positivo disso é que não atrapalha a trama ao ponto de deixar o menos atento telespectador perdido, mas o negativo é exatamente de deixar o mais atento questionando muito. Às vezes reviravoltas tão importantes precisam de uma base sólida para propor uma imersão maior no tamanho do acontecimento narrado. Neste contraponto narrativo está a fotografia, que aqui é utilizada como um recurso narrativo muito importante (e para quem não saiba, sempre é, para melhor ou pior, como tudo na vida) na hora de captar uma emoção. Aí surge o carimbado cinematógrafo Walter Carvalho, responsável pela grande maioria dos filmes brasileiros com uma fotografia de encher os olhos, Walter se faz dos mesmos recursos fotográficos utilizados na novela Velho Chico (2016), e se sai bem na maioria do tempo. Os cabelos ruivos da atriz Bruna Linzmeyer parecem se completar com o fundo avermelhado em cada close de cena, em cada plano fechado, assim como uma diferenciação presente em seus marcantes olhos azuis também não passa despercebida, é seu destaque nessa saturação de cores, o que cai bem em uma personagem tão sonhadora. E ao contrário do que fizera Jorge Furtado em Real Beleza (2015), ao ignorar a particularidade de locações parecidas (senão as mesmas), assim como sua luz e seu encanto por uma vegetação rodeada de basalto, tanto Carvalho quanto Selton parecem ter entendido a alma da região, e transpor isso na tela é mais difícil do que parece. Ainda que não funcione sempre, é algo que eu não havia presenciado ainda na sala de cinema, e creio que ao se desvirtuar do esteriótipo de Instagram, poderá render frutos ainda melhores para as imagens cinematográficas.
Talvez a produção também devesse ter preocupado-se mais com o sotaque dos personagens, a região retratada do Sul do Brasil é muito conhecida por seus "e" fortes e por utilizar o "r" fraco, mesmo em palavras de "rr", e em ninguém, protagonista ou coadjuvante, esta característica é perceptível, mesmo naqueles que aparentam ter nascido e vivido sempre por ali, talvez apenas no homem no trem (interpretado pelo magnífico Rolando Boldrin). Isso faz com que, aos acostumados do local, os diálogos percam um pouco de sua magia lá e cá, onde se percebe um paulista ou um carioca falando, e não um linguajar dos descendentes da atual região da Itália que habitam o interior do Sul.
Se falta sensibilidade em alguns momentos, de cortes abruptos e de soluções incoerentes, como já evidenciado, não falta sensibilidade em um todo, em tempos de violência urbana crescente e radicalização política (leia-se: ignorância vestida de soluções fáceis), O Filme da Minha Vida é um testamento artístico não só daquilo que podemos ser, mas daquilo que somos, e a metáfora proposta sobre homens e porcos não pode passar despercebida, afinal os porcos não sabem que são porcos e por isso são "porcos", sabemos o que somos? E simplesmente saber o que somos nos faria sofrer menos? E é nessa capacidade tão simples de fazer-se sorrir, chorar e refletir profundamente que a película esconde sobre si todas as falhas técnicas, mesmo as mais subjetivas (como o alongamento desnecessário da última cena), e nos faz querer não só conhecer a sua estória, mas conhecer seu final. E esse.. eu não posso contar.
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