Na maioria dos filmes do diretor norte-americano David Lynch, há sempre um objetivo simbólico que conecta dois mundos distintos. Se em “Veludo Azul” era uma orelha jogada num jardim qualquer, em “Cidade dos Sonhos” era uma caixinha azul cheia de segredos, em “Eraserhead” era um objeto de metal situado no meio de terras cinzentas, em “A Estrada Perdida” era uma fita de vídeo, em “O Homem Elefante” é a máscara de pano usada pelo personagem-título que realiza tal proeza, com apenas uma pequena abertura escura possibilitando sua visão, abertura que receberá uma intensa aproximação até a imagem ser engolida pela escuridão, assim como ocorreu com os outros. Feitos de detalhes e doses elevadas de surrealismo, as obras do diretor costumam mostrar não só personagens esquisitos e “soltos” com relação ao passado e futuro, tramas mirabolantes e ambientes estranhos, mas também uma singela desesperança com o mundo exterior, o ser humano afundando em sua própria desgraça, um pessimismo poético que beira ao horror quando a linha tênue entre o sutil e o brutal se desfaz com o andar das engrenagens.
É basicamente isso que se pode observar nesse seu “O homem elefante”, uma de suas primeiras obras oficiais e já apresentando as marcas que futuramente fariam dele uma lenda do cinema, mesmo que estejam mais contidas. Como conseqüência desse auto-controle, o produto obtido é um forte e realista drama com tons de pesadelo sombrio, onde os efeitos da direção de Lynch são responsáveis não só pela criação do ambiente pessimista cujas cenas de amor parecem cada vez mais escassas, mas pela narrativa gótica e perturbada que reflete o estado de espírito degradado do pobre homem elefante. O diretor sabe de todo o potencial do material que tem em mãos e os modela de sua maneira, criando um espetáculo dolorido e por vezes assustador, digno de sua personalidade bizarra e irresistível.
Logo no início, somos norteados pelas figuras de uma mulher berrando e elefantes nervosos, como se estivessem unidos pela fusão da imagem. Ouvimos o choro do bebê, a fumaça toma conta de tudo e acordamos dentro de um circo: Estamos num mundo sombrio, bizarro e cheio de esquisitices humanas. Dentre elas, se esconde o famoso homem-elefante John Merrick, uma criatura que vive enclausurada quando não está sendo exibida para o público sedento por um pouco de horror. Um médico chamado Dr. Frederick Treves se interessa pela decadente situação de John e tenta a todo custo integrá-lo na sociedade, reforçando a quebra de paradigmas e creditando na possibilidade daquele homem ainda se tornar alguém culto e respeitável. Claro que na época todos os tabus eram imensuravelmente mais fortes, mas a rejeição explícita de todos ao homem-elefante, que mais tarde se mostraria simpático e amante de livros, poderia se repetir até no nível de civilização e direitos humanos alcançados hoje em dia, lembrando que o mal sempre ressurge quando menos esperamos, inclusive dentro de nós.
Talvez seja essa a experiência lynchiana mais verossímil de sua carreira, junto com “Uma História Real”. Ainda que conserve muitas de suas características, como a profusão de imagens desconexas fundidas em prol de algum significado, a criação de um ambiente de horror sem a obra se encaixar em tal gênero, personagens esquisitos e um leve surrealismo, o diretor diminuiu a dose de loucuras e esquisitices com o principal objetivo de tornar sua obra um relato cruel e crível, em contraponto de seu lado mais onírico, mesmo que o exiba. Os únicos momentos irreais na trama são o seu início e fim, como se para começar ou finalizar aquela história, tivéssemos que fugir da realidade. Não há grandes quebra-cabeças, não há reviravoltas, não há muitas ilusões, mas a beleza única e a narrativa peculiar do diretor continuam na obra, intactas.
Por mais que beire ao horror em várias cenas, claramente o filme de Lynch é um denso e pesado drama que discorre a respeito da exclusão social e o mundo tão frágil das aparências. Inicialmente, John Merrick era quase um monstro, uma deformidade ambulante e irracional, se vista aos olhos superficiais aos quais fomos apresentados nos primeiros contatos com ele, sempre usando uma máscara pra esconder quem realmente é. Logo, o doutor Frederick Treves estabelece uma forte amizade com o doente, num misto de compaixão e justiça que sente pela “criatura”, ocasionando de finalmente se dar conta de que a tal aberração era humana, sabia falar, ler, ter gestos cavalheirísticos e era portadora de uma sensibilidade tão grande que acabou a prejudicando. Maltratado pelas pessoas, excluído do convívio social, julgado pela sociedade, a deformidade de Merrick assusta a todos pelo motivo de ninguém saber lidar com o diferente, o incomum, o que antes era camuflado para a sustentação de uma ordem falsa. Encaixam-se na mesma situação os negros, deficientes físicos, homossexuais, todo o tipo de pessoa que foge do comum e recebe influência da rejeição em massa, se tornando grandes elefantes no meio de pessoas tão baixas. A sociedade julga mal aquilo que não entende.
Além da veia autoral permitir a singularidade emocional e estilística da obra, a lindíssima fotografia em preto-e-branco, sugerida inicialmente por Mel Brooks (que foi produtor executivo do filme, dando oportunidade para Lynch dirigi-lo), dá um toque místico na época da Inglaterra Vitoriana a qual o filme se passa, originando uma auréola sombria e misteriosa que o filme ansiava em possuir. Envoltos por esse clima, Anthony Hopkins, futura estrela de filmes de horror, faz junto com John Hurt a grande dupla protagonista, incríveis quando estão em cena e exploram a relação cuidadosa daqueles dois homens equivalentes em consciência e diferentes em forma, atentos para perceberem se tal relação se transformará em algo exploratório pelos dois lados possíveis. O mundo descolorido ainda aguarda closes nervosos, nevoeiros que rapidamente se dissipam, espelhos malditos onde o homem-elefante vê seu reflexo e o espectador se vê no homem-elefante, numa troca de corpos. É no jogo de imagens e sombras, que acabam cedendo ao surrealismo em seu início-fim, que tudo se constrói e a melancolia lúgubre paira no ar.
“Nada morrerá”, é o que a suposta mãe de John, envolta por uma membrana de luz, sussurra entre as poeiras do espaço. Seu filho ao final foi aceito pela sociedade em que tanto lutou para fazer parte (apesar de não totalmente incluso), sendo aplaudido por aquelas pessoas que um dia o jogaram pedras e abriram ferimentos, mas a verdade é que o receio do ser humano contra seu diferente nunca será removido, mas sim contido. Merrick acabou cedendo sua própria vida para que sua bela mensagem fosse propagada, e quando foi, era sua hora de se deitar na cama do mesmo jeito que qualquer ser humano normal faria. Condenado por sua aparência, talvez sua beleza interior e simpatia tenham sido suas maiores maldições. Apesar de todas as reflexões e pessimismos da trama, possivelmente “O Homem-Elefante” seja o mais acessível dentre os filmes de Lynch, pela sua crença numa trama sólida e sem muito espaço para surrealismos, pelo prestígio recebido do Oscar e premiações populares, porém em sua matéria bruta é um autêntico conto louco do diretor, meio disfarçado pela aparência de primeira vista, mas se comprova um verdadeiro pedaço de cinema lynchiano quando realmente conseguimos olhar além.
A interpretação de Hurt é comovente. "Eu não sou um animal!". Não há como não se emocionar.