O mundo em The Shining é totalmente arquitetado. Do início ao fim, o que se vê preso dentro do Overlook Hotel é uma verdadeira obra a parte: as paredes que mudam drasticamente de tom a todo momento em todos os quartos com cores fortes e agoniantes, o piso confuso de cores desconcertantes e dispostos de maneira persuasiva, os corredores uma verdadeira prisão estendida, os objetos colocados de forma bizarra, dando espaço demais, mas ar de menos. Os primeiros passos de Jack (Jack Nicholson) no Overlook, observados lentamente em um plano-sequência que engloba todo o cenário, já nos dizem o suficiente.
O Iluminado (The Shining, 1980) pertence a classe de filmes, assim como Psicose (Psycho, 1960) por ter uma cena em que todos conhecem, mesmo os que ainda não viram, devido a diversos motivos, seja pelo ineditismo ou pela criatividade (insanidade) que carregam. É claro que tanto Iluminado como Psicose são muito mais do que uma só sequência, mas cabe uma análise desses filmes e cenas em questão. O filme do Kubrick é também um filme sobre o transtorno mental e ambas as cenas acontecem no banheiro. Porém o que faz tanto como Kubrick e Hitchcock ganharem a atenção por seus filmes é a “nudez” de seu cinema: As cores fortes que hipnotizam o espectador e a sinfonia gritante e arrepiadora ganham a mesma potência daquele singelo hotel de Norman Bates, esse em um delirante preto-e-branco e seu som que parece matar mais que a faca do assassino. O que faz Kubrick 20 anos depois é maximizar, ao modo de seu cinema, o que Psicose trouxe a sétima arte, a velha história de fantasmas, porém abusando (literalmente) do público, destruindo padrões e utilizando de tudo o que o cinema proporciona.
Kubrick encontra aqui o seu cinema mais visceral, inverte e cria sua própria linguagem a partir do isolamento de seus personagens, dos sons e das imagens. Aliás, parece que é assim que diretores conseguem explorar seu próprio cinema, assim como Argento em Suspiria (idem, 1977), Stanley utiliza os personagens de cobaia, usa a câmera ora como vítima, ora como assassina e não importam se em desmembrar a narrativa, fantasiar, criar e explorar a loucura que instalaram em seus filmes. O que Stanley faz em O Iluminado é recriar a história clássica de terror que existe dentro do subconsciente de cada um de nós, mas ao invés de apenas reproduzi-la, faz o contrário, pergunta para nós mesmos, através da depravação, da atuação filha da puta de seus assassinos e sobretudo do choque visual.
Da para contar nos dedos as mortes que acontecem em O Iluminado. Porém, o que cria o sufoco do espectador não é o susto, não é o seu teor de sangue, de mutilações, mas sim a agilidade com que moldam o seu cinema. Dentro das alucinações e mortes, tanto em Suspiria, Psicose como aqui no filme de Kubrick o que causa a incerteza e a agonia é o som, a imagem e o movimento, os três elementos físicos responsáveis por criarem o cinema como conhecemos hoje, portanto a experiência deles em tela tortura o espectador, que curioso para ver busca e busca cada vez mais e assim serve mais ainda como instrumento de seu diretor, esse sim o “deus” desses elementos, que nos provoca e perturba – o verdadeiro psicopata.
Seria equivocado da minha parte dizer que assistir O Iluminado é uma experiência gostosa, cômoda. Aliás, Kubrick faz exatamente ao contrário quando vemos seu filme, a primeira coisa é nos tirar da zona de conforto, nos deixar cair do sofá, abrir novas experiências, explorar temas – que querendo ou não, sempre será a deficiência e o ponto fraco do espectador em geral: descobrir e explorar o novo. O Iluminado é sim apenas uma história de fantasmas, um velho conto de terror, mas totalmente arquitetado, o melhor possível para o cinema, mas de certa forma não para nós. Shining ficará marcado para sempre sobretudo por derrubar (esfaquear, mutilar, destroçar, chutar e dar um oizinho na porta) os limites da criação. Dentro do Bates Hotel, do Overlook ou mesmo da escola de balé, estaremos correndo em círculos intermináveis, em vão. Enquanto houver a ousadia de desafiar o espectador, sempre seremos aquela jovem e inocente mulher no banheiro.
Ótimo texto!
Obrigado Gian!
Belíssimo texto! Diferente por enfocar a análise e não uma mera descrição do filme. Fantástico.
Valeu Marcelo! 😋