A decadência em todos os âmbitos e esferas é o mote de O Leopardo (Il Gattopardo, 1963), de Luchino Visconti. Don Fabrizio Salina (Burt Lancaster) é o leopardo. Um homem já velho, porém ainda charmoso, príncipe de um reino que se dissolve por conta da revolução que pretende unificar a Itália. Não que isso vá o afetar diretamente, ou que vá tirar seu poder de aristocrata. Alheio a tudo isso, ele observa as peças desse jogo se moverem e até apoia os revolucionários, pois ele, o leopardo, sabe que as coisas precisam mudar para continuar as mesmas.
Há certa semelhança entre O Leopardo e Guerra e Paz. Por isso o filme pode ter um gostinho a mais para quem aprecia a saga de Tolstoi. A história da unificação da Itália retratada no filme segue o mesmo molde da narrativa do russo, que aborda a invasão napoleônica à Rússia. Em ambas as obras as principais testemunhas oculares vem dos altos escalões da aristocracia e precisam lidar com as mudanças que ocorrem por causa de fatos alheios a eles, seja a revolução no primeiro caso, seja a própria guerra e invasão no outro.
Do mesmo modo cabe comparar a obra de Visconti com a versão cinematográfica de Guerra e Paz (War And Peace, 1956), feita por King Vidor. Sendo uma produção ítalo-estadunidense, o filme de 1956 conta com lindas paisagens reais onde acontecem as batalhas tremendamente produzidas, além de esmero técnico nos figurinos e cenários produzidos. Em O Leopardo, acontece o mesmo, mas de um modo ainda mais detalhista e grandioso.
Aliás, a grandeza do filme de Visconti está nos pequenos detalhes. Como boa parte da película se passa em palácios majestosos e grandes casas monárquicas, é muito interessante observar a composição de cenário. As minúcias do figurino, bem como os detalhes de ambientação deixam o espectador se sentindo parte daquele habitat daqueles ricos, cheios de manias e modos extravagantes.
Parte do crédito para essa experiência do espectador em se sentir próximo do que acontece no filme é a direção de Visconti. Com uma câmera que atravessa o cenário constantemente através de travellings, podemos perceber cada canto do cômodo onde a ação se passa. Quando a cena é a mesa, rodamos em torno dela e vemos as peculiaridades de cada personagem na hora da refeição, bem como os detalhes de tudo que está sendo servido. A iluminação prioriza as velas e a luz natural, que entra pelas grandes janelas e portas de cada cômodo. Impossível nesses momentos não se lembrar de Barry Lyndon (idem, 1975), de Stanley Kubrick, muito provavelmente até inspirado nesse aspecto na obra de Visconti.
As vastas paisagens rurais da Sicília também não ficam para trás no quesito beleza. Durante as caçadas e viagens de carroça protagonizadas por Salina e sua família, fica o deleite visual proporcionado pela linda fotografia, que oferece panorâmicas dos campos e vales sicilianos. Em contraponto temos também, em meio a esses campos, cidades em ruínas, destruídas por conflitos entre bourbons e revolucionários. Assim como quando filma os momentos de paz, Visconti conduz com a mesma destreza a batalha pelas vielas da cidade, com vários coadjuvantes e grande riqueza de detalhes.
Apesar de ficar esquecido em certos momentos, quando a estória foca em seu sobrinho Tancredi Falconeri (Alain Delon), que luta ao lado dos revolucionários, Salina é o pilar do filme. Mesmo quando não aparece diretamente, o roteiro sempre o relembra, ou melhor, relembra aquilo que ele representa, a decadência. A atuação de Burt Lancaster, um americano falando italiano, é perfeita, mostrando que a escolha arriscada de Visconti foi certeira. Passando pelas três horas de filme, é possível ver a mudança de postura de Salina. Mesmo sem perder seu poder diante dos homens e seu charme diante das mulheres, ele sente o peso dos acontecimentos a sua volta. Se na metade do filme a câmera o foca de baixo para cima, com fogos de artifício explodindo ao céu, no final temos a cena em que o leopardo se olha no espelho, ápice da atuação de Lancaster, que exprime todos os sentimentos do personagem através de uma solitária lágrima.
Mesmo tratando de um assunto sério, Visconti e seu verdadeiro time de roteiristas, Suso Cecchi D’Amico, Pasquale Festa Campanile, Enrico Medioli e Massimo Franciosa acertam ao trazer diversos alívios cômicos para a tensão da estória. Geralmente através do Padre Pirroni (Romolo Valli), que contracena de modo leve com Burt Lancaster, temos diversas piadas mostrando o choque dos pontos de vista clericais e da nobreza, da pobreza e da riqueza. Não bastassem as sutis comicidades, esse antagonismo é realçado na cena em que o padre está numa taberna, em meio aos mais pobres, e conta o modo de vida dos ricos. Ele ressalta que os ricos não são pessoas ruins, são apenas estranhos, como se vivessem em um mundo alheio ao dos outros.
Cabe aqui voltar mais uma vez ao ponto central da obra. A decadência do sistema monárquico e de seus protagonistas abre espaço para o surgimento de uma nova classe dominante, a classe média liberal. Bom lembrar também da frase inicial do filme, algumas coisas precisam mudar para continuar as mesmas. Se o movimento de classes se transforma constantemente, o sistema em si continua o mesmo. Por toda a obra temos a alta burguesia em sua altivez, em seu mundo paralelo, no máximo apenas se encontrando com sujeitos ascendentes ao seu status. A preocupação com a revolução é distante e seu principal antagonista, Garibaldi, – que também lutou aqui no Brasil, ao lado dos farroupilhas na Guerra dos Farrapos – é sempre citado, mas nunca aparece. É como uma lenda, assombração, ou o próprio demônio, que os assombra, mas no fundo não passa de um perigo irreal.
O Leopardo mostra, mais de 50 anos depois, que a manutenção do status quo é algo presente há séculos. Provável que tenha acompanhado o homem desde sua tenra idade universal, e quiçá caminhe junto com ele até sua velhice. O homem, assim como o leopardo, sabe qual é o seu papel na sociedade que o cerca, mesmo estando alheio a ela. Quando a velhice chegar, resta a ele perceber que é hora de tomar ar fresco e continuar sua caminhada até o fim, assim como o leopardo.
*Texto escrito originalmente para o blog Cine Alphaville.
Confesso que me lembro desse muito, mas muito, vagamente. O texto me refrescou um pouco a memória, mas vou reconferir.
vale muito a pena, Cristian.