“No ano em que completei 26 anos eu ganhei 49 milhões de dólares no comando da minha própria corretora, o que me deixou realmente puto, por que isso era menos de um milhão por semana.”
O Lobo de Wall Street é puro cinema do “maior cineasta americano vivo”, Martin Scorsese. É a história que o diretor tanto gosta de levar para as telas, recheada com todos os excessos que marcam a vida de protagonistas que saem de uma vida sem glamour, no fundo de um poço que consideram pequeno demais para comportá-los e finalmente atingem o topo de suas respectivas cadeias alimentares, deixando pelo caminho quem quer que ouse atrapalhá-los, até finalmente encontrar a derrocada em seus próprios excessos, amargando a queda de seus impérios e de suas próprias figuras – algo sempre mais importante que o império em si.
Se esse mesmo plot já rendera em Cassino e Os Bons Companheiros duas das obras mais marcantes de uma carreira que as apresenta em abundancia, O Lobo de Wall Street não a desperdiça e se consolida como uma obra madura e digna da filmografia do cineasta que a comanda. E não é ao acaso que cito essas duas obras, afinal, esse novo filme de Scorsese apresenta muitas características que o tornam co-irmão dos filmes da década de 90, desde a abordagem estética da narrativa – diversos recursos da montagem, por exemplo - até a própria trama (baseada em uma história real, diga-se), que nos apresenta ao jovem corretor de Wall Street, Jordan Belfort (o excelente e cada vez melhor, Leonardo DiCaprio), o lobo do título, que vai de João ninguém a multibilionário liderando uma empresa que utiliza-se de meios ilegais para lucrar em cima dos investimentos de seus clientes.
Egocêntrico e viciado em todo tipo de droga imaginável, entre as quais sua preferida é, obviamente, o dinheiro que lhe permite fazer tudo que quiser, Belfort é um personagem que não conhece a palavra excesso, querendo sempre mais e mais de tudo, seja sexo, cocaína, dinheiro, ou mesmo uma maneira nova de torrar seu dinheiro, algo que o leva a discutir a logística de uma festa com arremesso de anões ao alvo. Dono de uma lábia imensa, capaz de convencer alguém a colocar milhares de dólares em um investimento que não renderá mais que alguns trocados, Belfort é tão bom no que faz que consegue transformar um bando de idiotas em corretores de primeira, capazes de levar uma empresa de fundo de quintal a faturar tanto dinheiro a ponto de se tornar visada pelo FBI. E isso tudo enquanto se chapa (com os companheiros ou sozinho), claro, algo que parece lhe consumir todas as horas do dia, seguindo a risca a primeira dica que ouve ao chegar à bolsa de valores, vinda do experiente Mark Hanna (Matthew McConaughey), que assume o papel de seu mentor.
Belfort, como se pode perceber é um cara que nasceu para ser levado ao cinema pelas mãos de Scorsese. Ele é um personagem nato, pronto para ser explorado em um estudo de personagem de primeira. E é exatamente essa personalidade particular do sujeito que levou o filme a ser abertamente criticado por pessoas que desperdiçaram sua sessão encontrando chifre em cabeça de cavalo, disparando acusações de que o filme é um tratado de três horas que serve de apologia às drogas, ganância e até mesmo ao sexo. Ledo engano, tudo que a câmera de Scorsese NÃO faz em O Lobo de Wall Street é julgar seu protagonista e aqueles que o cercam. Scorsese não é um diretor de dar lições de moral – diferente de seu amigo Spielberg em seus últimos trabalhos -, portanto, o que vemos aqui é um retrato dos fatos, exagerado e estilizado, mas ainda assim um retrato da vida de Belfort que realmente fazia tudo o que o filme retrata. Ora, como o próprio Scorsese disse em meio às polemicas da estreia de seu longa, “ele não é juiz, só faz cinema”.
E como faz. Scorsese com uma câmera é sinônimo de qualidade cinematográfica. E conferir a abordagem estética que o cineasta (em parceria com a montadora Telma Schoonmaker) dá para a viagem de Belfort e sua trupe até o topo e depois dele para o chão é um deleite que todos os anos o cinema deveria proporcionar. Talvez inspirado pelo seu próprio passado de excessos de drogas – “Tomei todas as drogas. Queria testar os meus limites e ver se morria no fim.”, afirmou certa vez -, Scorsese empresta toda sua técnica ao filme, resultando em um trabalho brilhante, ainda que acusado por muitos de estilizado em excesso. O que representa um erro, afinal, nenhuma decisão do diretor é gratuita. Não há firulas soltas em seu filme. Do freeze frame que dispara o flashback eu inicia a história de Belfort às quebras de quarta parede do personagem, em que ele chega mesmo a desprezar o espectador rindo e dizendo não saber o porquê de tentar explicar como funciona um golpe, já que sabe que não conseguiríamos entender. Da mesma forma, algumas sacadas de Scorsese e Schoonmaker são geniais, desde a simples intervenção de Belfort na narrativa exigindo a mudança da cor de sua Ferrari que “é branca, como a de Don Johnson em Miami Vice, não vermelha”, até a dupla abordagem de um mesmo evento, que revela o quão chapado o protagonista estava e sua lembrança totalmente equivocada do ocorrido.
Além disso, a veia cômica de Scorsese nunca esteve tão em alto, já que, surpreendentemente, O Lobo de Wall Street é também uma das melhores comédias do ano, ainda que não se enquadre necessariamente nessa categoria. Utilizando o timing cômico de seus atores a exaustão, o diretor arranca gargalhadas inesperadas com cenas quase sempre estreladas pelo ótimo Jonah Hill e também por DiCaprio, que revela ainda mais facetas de seu talento. Assim, somos surpreendidos por hilários momentos que já figuram em qualquer antologia do cineasta, como Donnie Azoff (o personagem de Hill, braço direito de Belfort e vice-presidente de sua empresa) se masturbando em público em uma festa na mansão do personagem de DiCaprio, o protagonista com (é sério) uma vela no ânus e, o mais engraçado e genial de todos, o momento em que os dois tentam conversar sob efeito de um pesado medicamento que paralisa seus lábios.
E se mencionei DiCaprio e Hill é preciso dizer que não apenas os dois, mas todos os nomes do elenco estão em sintonia, já que O Lobo de Wall Street parece incapaz de oferecer uma única performance abaixo da média, da bela Margot Robbie, desconhecida do grande público até então e que aqui interpreta a bela esposa de Belfort (eu já disse que ela é bela?), até McConaughey, que hoje não cansa de emendar bons papéis e aqui, com poucos minutos em tela, apresenta uma das melhores atuações de sua carreira, desaparecendo da história logo no primeiro ato, mas fazendo seu personagem ecoar pela narrativa inteira ao som da música que cantarola com batidas no peito em um restaurante. Da mesma forma, Hill surpreende por revelar todo o alcance de seu talento para compor personagens, que já havia ficado em evidência em comédias como Superbad – É Hoje, para tornar Donnie um homem surtado, mas que conserva um aspecto juvenil de espontaneidade. E chagamos enfim a um dos mais subestimados atores do cinema atual: Leonardo DiCaprio.
Ator que desde que iniciou a parceria com Scorsese - há mais de dez anos, com Gangues de Nova York -, não parou de emendar projetos interessantes e uma onda crescente de interpretações de primeira, DiCaprio encontra aqui se não sua melhor performance, ao menos o seu melhor papel, podendo explorar a insuspeita veia cômica já citada e toda a sua visceralidade e entrega ao papel de um homem complexo e cheio de facetas para explorar, algo sempre emoldurado pelo carisma do ator que torna Belfort uma figura fascinante seja completamente alucinado pelas drogas, seja exaltado em um de seus muitos discursos. E por falar nos discursos do personagem, a performance de DiCaprio em um deles, perto do fim do longa, por si só já valeria sua vitória em todas as premiações do ano, indo de um patente orgulho do que conquistou e da confiança em seu próprio taco até a insuspeita expressão de frustração por deixar tudo para trás, o que o leva a adotar um tom de voz mais calmo e baixo e a um esforçado controle para segurar as lágrimas, retornando ao estado inicial e amplificando-o em um novo rumo para seu discurso que acaba se tornando uma síntese de todos os pronunciamentos do protagonista até então. Um trabalho de gênio que mostra mais uma vez o real talento de um intérprete que já insistiram afirmar ser apenas um rostinho bonito e a cada trabalho avança em sua própria qualidade se firmando como um dos melhores de sua geração.
Podendo ser encarado como um filme cansativo pela repetição de certas cenas, mas que acaba as justificando se analisado como um todo, O Lobo de Wall Street encontra tempo ainda para um final recheado de humor negro em que um agente do FBI que captura um famoso criminoso permanece anônimo retornando de transporte coletivo para casa enquanto seu “prisioneiro” permanece aplaudido por uma multidão admirada com suas conquistas. Pode não ser o melhor ou o mais inovador filme do ano, mas é Scorsese em estado paradoxalmente bruto e lapidado. E isso por si só vale a sessão.
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