Aqui está mais um filme a ser visto de Rainer Werner Fassbinder, ele encontra em O Medo do Medo um de seus melhores ângulos para filmar uma dona de casa em busca de sua liberdade metafísica, e é em um plano fechado em seu rosto, ao som de (pasmem!) Leonard Cohen: "yes and lover, lover, lover, lover, lover, lover, lover come back to me", é a fuga do suplício social através de uma música. Mas não, não apenas por isso que este é um dos grandes de Fassbinder; as cores vivas, em intenso contraste entre si, em tons pastéis ou em tons mais fortes (sim, junte isso a uma mulher perturbada e nos vêm a memória Almodóvar). Mas não, não apenas por isso esse é um filme acima da média, não pode-se esquecer que provavelmente ninguém entendeu tão bem a situação mental por qual passava o seu país (vamos mais além, grande parte do seu continente), e certamente, ninguém entendeu tão bem a situação feminina nesse caos. Mas não, vamos mais além, não apenas pela trilha sonora eclética, pelo olhar feminino ou pelas cores que este é um filme grandioso. Lembremo-nos que o maior vício não são as giletes com que os depressivos cortam os pulsos, não são as pílulas e nem o álcool ou o cigarro em que os viciados fogem. A maior fuga do ser humano (leia-se: o seu maior vício) é viver uma vida para ser quem não é.
Se no ano anterior, em O Medo Devora a Alma respectivamente, Fassbinder nos mostrava o medo metafísico, o medo que não poderia ser visto, mas percebido através de uma análise nem tão apurada, em O Medo do Medo, o medo - sendo este o verdadeiro personagem - é materializado. Sim, materializado, ele é representado a todo instante não como um casal que se isola do mundo pela pressão social que vivia (O Medo Devora a Alma), mas no pedaço de vidro que corta um pulso, numa garrafa de whisky, numa vitrola, no homem misterioso que aparece a todo instante, na imagem que quase se liquefaz e talvez até, no sexo com o vizinho. Já não necessitamos mais da percepção que foi concedida a nós seres humanos, mas apenas do tato, algo que o mais rústicos dos seres deste planeta possuem.
Não é sobre o que somos, e sim sobre quem tornamo-nos.
Margot é pressionada por todos os lados, precisa educar uma criança, cuidar de um bebê, aguentar a passividade e indiferença do marido, somado a insistência em serem algozes e mexeriqueiras da sogra e da cunhada. Aqui o indivíduo sente-se a parte do meio social e do meio familiar. A pressão do meio social determina nela, no seu dia a dia, a sua paz de espírito para consigo mesma. Desconhecemos o passado de Margot, mas nos parece claro que o seu casamento não estabelecido através do amor ou de qualquer outro motivo que não fosse o meio social-econômico, mais social talvez. Parece claro que ela não estava pronta ou simplesmente, não é da sua personalidade ser a mulher que se tornou. Daí as olhadas no espelho, que em várias passagens do filme ela diz exatamente o que é que está acontecendo, ela precisa aceitar no que se tornou. Até mesmo quando tem uma relação extra-conjugal, o ato sexual não é visto ou presenciado por nós, e não por puritanismo de Fassbinder (isso pode soar engraçado), a questão é que Margot não consegue se estabelecer em qualquer lugar. O "sim, podemos morar juntos, mas..", esse "mas", o "mas" de um amante soa quase como uma sentença.
Em determinada cena, numa conversa amigável com o marido, a câmera desliza lentamente por sua lateral até separar os dois por um abajur na visão do telespectador. Um golpe duro aos cinéfilos mais atentos.
O homem da casa, sempre preocupado em fatores externos (uma prova, um jornal, o dia no trabalho) nunca parece ameaçador para Margot, ele nunca é violento ou incompreensivo, apenas indiferente. Possivelmente pelo mesmo motivo de sua mulher, uma relação desgastada (?), um casamento forçado (?). Não me surpreenderia se ele fosse homossexual e vivesse ali por puro conformismo perante a sociedade, é uma visão parcial minha, é claro, pois o filme nunca deixa isso claro.
Quando Margot é puxada de seu fone de ouvido, ela é arrancada de seu lugar de conforto, lembrada do seus deveres e puxada novamente para a realidade na qual a amedronta, não como uma esquizofrênica, mas como um ser humano deslocado.
O que torna tudo tão devastador em O Medo do Medo, é a total falta de redenção, de respostas, se Fassbinder tivesse sido um escritor de livros de autoajuda, certamente teria morrido de fome.
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