Uma das características mais marcantes da animação é a sua capacidade quase ilimitada de transgredir as imposições do tempo, da física e da matéria. Da massinha maleável do stop-motion às formas mutáveis do desenho animado, os diferentes corpos podem ser esticados, comprimidos, deformados e mesmo redesenhados. Uma absoluta liberdade de metamorfose, concomitante, por sua vez, a uma empolgante liberdade de mise-en-scéne: os corpos desafiam a física e a gravidade; caem, saltam, voam, sem um mínimo de esforço ou sacrifício, na quase totalidade do espaço (e tantas vezes de maneira tão irreverente e encantadora). Por fim, temos a oportunidade de concepção de um mundo inteiramente novo, o qual, a despeito das referências à realidade física, mantém-se aberto a todas as possibilidades da fantasia e da imaginação a partir da impetuosidade criativa do lápis, da massinha ou do computador. A animação, portanto, torna-se uma técnica revolucionária em muitos sentidos, e é uma pena, inclusive, que cineastas que já tanto tematizaram a linguagem cinematográfica ainda não se detenham nas transgressões e peculiaridades dessa variante do Cinema em si.
Mas a partir dessa absoluta liberdade criativa, é natural e mesmo inevitável que a animação seja constantemente vinculada a um universo fabuloso infanto-juvenil. No caso, a imaginação fértil da criança encontra fácil respaldo na imaginação fértil que guiará o filme de animação. A criança, nos pueris desenhos feitos com lápis e giz de cera ou nas fabulosas histórias por ela inventadas, também concebe um mundo novo – inspirado nas experiências e aprendizados do dia a dia, mas, ao mesmo tempo, isento de regras ou imposições que interfiram na livre disposição das cores, corpos e objetos ou na livre ação e movimento das inusitadas personagens. Quando devidamente incentivada, a criança torna-se uma pequena cineasta: adota uma determinada forma de ver o mundo e cria, a partir dessa perspectiva, imagens e narrativas de inúmeras possibilidades, e o cinema de animação é o que melhor reflete essa atitude de extrema sensibilidade e criatividade (mesmo quando o filme aborda uma temática adulta).
“O Menino e o Mundo”, recente (e premiado) longa-metragem de Alê Abreu, talvez seja um dos filmes que melhor vislumbre esse potencial criativo infantil aliado ao potencial criativo da animação. No começo do longa, o protagonista, num cenário tomado pelo branco, encontra-se sucessivamente com uma série de elementos e corpos que surgem quase espontaneamente nesse espaço (diga-se de passagem, num interessante jogo em que cenários bidimensionais subitamente assumem uma tridimensionalidade). De interação a interação, como numa espécie de “crescendo” visual, o menino finalmente chega numa espécie de mata virgem, extremamente colorida, estilizada e alegre. Já nessa primeira cena temos o reflexo de uma impetuosidade criativa juvenil: ao longo das experiências com o mundo físico, a criança vai desenhando um mundo próprio para o qual não hesita em investir uma diversidade de cores e formas, cada uma dotada de particular expressividade e inventividade (o que compactua, aliás, para uma pueril transgressão e irreverência por parte do desenho em relação ao mundo físico no qual foi baseado).
É interessante, inclusive, a maneira como o filme utiliza o espaço branco: embora se relacione à ausência da figura paterna (a pedra angular da narrativa), o branco também remete ao papel a ser preenchido pelo desenho. Além da carência pelo pai, temos a carência por novas formas e cores que ocupem esse espaço, no fundo a verdadeira missão do menino em sua jornada de descobertas pelo mundo afora. Aliás, é na ocupação desse espaço que a direção de arte do longa-metragem efetua inspiradas referências a esse ato de criação infantil. É o caso dos belíssimos cenários dos primeiros atos da narrativa, aparentemente feitos à base de tintas, lápis e giz de cera, numa sutil evocação dos desenhos de jardim de infância – e o certo saudosismo inspirado pela textura dos materiais do desenho, somado ao uso criativo de vibrantes cores, resulta em quadros de grande apuro visual (por exemplo, um rosado e intenso crepúsculo rosado). E se alguns dos cenários possuem o aspecto chapado dos desenhos infantis, estes também são lembrados pelos traçados sintéticos, embora bastante expressivos, das próprias personagens (além de certos espaços como a pequena casa do protagonista ou o conjunto de casas da favela).
Mas a impetuosidade criativa infantil é também referenciada pela trilha sonora. A despeito do pontual uso de instrumentos de sopro, o trabalho do grupo Barbatuques também remete a uma ideia de inocência e transgressão, a partir da exploração do próprio corpo para a mímese de certas sonoridades, além da criação de outros sons – ou seja, uma forma de interação criativa com o corpo, digna das experimentações e inventividades efetuadas no plano da imagem (e pode-se dizer que a trilha sonora também cumpre sua parte na ocupação do espaço branco, uma vez que ela é traduzida em coloridos símbolos visuais). A animação, por fim, personifica a irreverência material desse imaginário infantil, haja vista a maleabilidade dos traços e formas que humilham as imposições da física – vide o protagonista que corre, flutua e voa livremente pelo espaço, ou, por exemplo, a linha da estrada que se converte em violenta onda de uma enchente (e nisso se inclui a carreta que se transforma em um bote improvisado).
Mas se a princípio a matéria quase inexiste nesse mundo fantástico (excetuando a leve textura do giz de cera), é interessante como essa mesma materialidade passa a gradativamente se impor ao longo da narrativa. À medida que o menino descobre a exploração no campo e na indústria mais as opressões e desigualdades da cidade, a matéria é revelada. A carreta pesada utilizada na lavoura do algodão, os instrumentos e maquinarias da fábrica, os contêineres metálicos que quase esmagam o protagonista: os objetos agora ganham peso, massa, volume e textura. E em oposição ao caráter pictórico dos primeiros cenários, a linha torna-se mais onipresente, marcante e expressiva, com o ápice dessa linearidade se dando com o universo abstrato do computador que literalmente engole a criança. Os cenários urbanos, por fim, são tomados pelas colagens: o giz de cera, inocente e despretensioso, cede lugar a uma forma de ilustração que pressupõe (e escancara) o efêmero da matéria com a qual o próprio desenho foi feito (o papel que teve que ser descartado para ser utilizado na colagem).
É interessante, inclusive, a resistência que a livre imagem pictórica de outrora exerce em relação às imposições dessa materialidade – resistência personificada, no caso, pela cultura popular que luta contra as opressões da metrópole consumista, fascista e industrializada (e o filme chega a evocar um imaginário latino-americano ao representar essa cultura popular como uma vivaz mescla de cores e ritmos). A matéria, entretanto, ainda ganhará o embate. A pureza e a liberdade das cores e formas juvenis não resistirão ao peso das munições da metrópole, e é nesse extremo ponto de tensão que o próprio papel do desenho será queimado, dando lugar a registros em vídeo de devastações e desigualdades. A animação que transgride o mundo físico é violentamente tomada pelo documentário, o registro por excelência do corpóreo e do material – aqui revelados no ápice de sua massa, densidade e efemeridade. E dos desdobramentos dessa passagem temos uma dramática ressignificação de tudo o que vimos até o momento. O desenho infantil era o fruto de um processo de descoberta e conhecimento, o símbolo da impetuosidade criativa estimulada pelas interações com um mundo explorado e sentido. Agora, o mesmo desenho torna-se a memória vaga de um tempo perdido e agora irrecuperável.
Mais especificamente, a fantasia, de instrumento para ricas aventuras e descobertas, converte-se em um ato de saudosismo e mesmo um ato de refúgio. O desenho é agora utilizado para evocar uma lembrança, um estado de espírito, toda uma realidade, passada ou até imaginada, que proporcione certo acalento e conforto, mesmo que nesse ato predominem os reflexos de um mundo material, físico e social. É nesse ponto que “O Menino e o Mundo”, além de ode a um imaginário infanto juvenil, também contextualiza esse imaginário entre as imposições de uma realidade opressora. No entanto, tal como a cultura popular representada no longa-metragem, o desenho, mesmo em seu saudosismo e melancolia, ainda resiste contra a matéria. Ainda que sem a inocência e o frescor da juventude, um novo papel será colocado sobre o filme documentário, e o desenho prosseguirá com a liberdade transgressora de suas linhas, formas e cores, a ponto de superar o fluxo cronológico da própria narrativa contada no papel. A animação, portanto, revela-se não apenas como uma fantasia escapista ou como a relíquia de um tempo perdido. Ela responde ativamente à matéria, aproveita-se da revolução de sua linguagem para superar o físico e criticar o social. Além da matéria e do corpo, o desenho vencerá o próprio tempo, e o menino continuará vivo entre o calor de sua família e a fertilidade de sua imaginação.
P.S.: Esse texto fará parte de um texto coletivo do grupo de estudos "Cinema da América Latina e Vanguardas Artísticas", vinculado à UNIFESP e cadastrado no CNPq. Segue o blog oficial do grupo de estudos: https://cinemalatinoamericano.wordpress.com/
Oi, gostei do seu texto! Assisti a esse filme há poucos dias e fiquei encucada com o final. Como tudo é muito aberto, acho que dá pra interpretar de várias formas... mas entendi que o menino e todas as suas viagens em busca do pai é, na verdade, um passado distante que convive como um abandonado com as suas fases mais adultas (o cara da colheita e o cara da fábrica). Como se ao crescer e aceitar todas as imposições sociais, o homem ficasse menos lúdico e apenas visse de longe o ser infantil que é. Então, o menino nem existe de fato (em algumas cenas). Será isso?
Obrigado Joana! Então, na minha leitura, é basicamente isso o que você falou. Eu só não diria que o menino não existe de fato. Mesmo que sua presença seja apenas a projeção de um afeto e/ou de uma lembrança, ainda sim existe uma presença, entende?. Na verdade, eu gosto de analisar esse filme a partir da sua linguagem. Para mim o desenho animado, com toda a potencialidade de sua criação, é a "arma" de resistência contra as opressões do meio material, físico e, por fim, social.
O desenho animado é a maneira pela qual o homem consegue recuperar esse menino perdido, e essa recuperação torna-se vital para a sua, sei lá, sobrevivência, integridade, esperança (todos abalados pela exploração social)... O desenho, nesse sentido, torna-se um instrumento de memória, afeto e, finalmente, resistência - e não à toa, o filme evoca a liberdade criativa dos desenhos e pinturas feitas na infância, opondo-a, mais à frente, à densidade da matéria (presente nas colagens e nos filmes documentários).