Foi numa tarde em São Paulo. Entrei num supermercado a fim de conseguir alguns itens de necessidade básica. Tinha vindo a São Paulo as pressas devido ao falecimento de um sobrinho meu. Os Supermercados naquela época não funcionavam 24 horas em sua grande maioria. No caso específico, esse na região dos jardins parecia funcionar. Andava nos corredores quando me deparei com ele. Ele percebeu minha surpresa e passou a se furtar a minha visão, andando rapidamente pelos corredores. Ao perceber isso me postei diante dos caixas e aguardei. Foi uma longa demora. Ele fazia com os demais que o pareciam conhecer a mesma coisa. Assisti de onde estava parte desse jogo de gato e rato. Quando finalmente dirigiu-se aos caixas, coloquei-me na mesma fila e o cumprimentei. Era Anselmo Duarte. Questionei a razão do que eu testemunhara e ele rindo disse fazer isso como uma gostosa brincadeira, para estimular a memória dos que o viam e não se lembravam direito onde viram aquele rosto. Falava-me na força da imagem que persistia por muito tempo. No final sempre ia até a pessoa e indagado se apresentava. Para quem não sabe, ele fora um dos maiores galãs do cinema nacional na década de 50.
Ao sairmos do local nos dirigimos a um local para sorver um café. Falei pouco e aguardei que ele dissesse o que quisesse. Falou pouco. Do pouco que falou, disse que fora um crime ter sido ovacionado em Cannes. Ninguém aceitou o fato de ter a obra dirigida por ele abocanhado tantos prêmios internacionais. E que tal como o Zé do Burro acabara virando um mártir (riu muito ao afirmar isso). Após a breve conversa que não se resumiu ao relatado (em realidade muito pouco ficou do que ele disse, pois fiquei a matutar a atitude brincalhona dele no Supermercado) despediu-se. Vi-o se afastando.
Relembrando a obra maior de sua filmografia tenho pouco a falar. Em primeiro lugar acho que o maior mérito do filme foi não modificar muito o texto original. Às vezes o maior mérito de um artista e saber reconhecer o talento do outro (no caso Dias Gomes – o autor da peça).
Elenco afiado, direção sóbria, texto enxuto e direto. Crítica a Igreja, ao autoritarismo e o final que simboliza a união do povo. Tantas são as qualidades da obra. E tão difícil descrevê-las. Na época , sequiosos por novidades, buscaram creditar o sucesso em Cannes a um possível golpe do júri que para não desagradar diretores importantes que concorriam a estatueta, optaram por escolher uma terceira via. Maldade pura.
Anselmo Duarte foi grande ao manter a força e a originalidade do texto original. E por manter vários atores que já a haviam encenado nos palcos. Othon Bastos, Glória Menezes, Geraldo Del Rey, Norma Benguell, Dionísio Azevedo, Antonio Pitanga, etc, formam um elenco que se projetaram durante décadas, alguns até internacionalmente. E Leonardo Villar no papel principal, conseguiu captar toda a profundidade do personagem principal.
Um marco no cinema nacional que nem a imbecilidade de fanáticos do Cinema Novo conseguiu fazer cair no esquecimento.
A ti, Anselmo Duarte, escrevo essas mal escritas linhas. Uma forma de me desculpar por não ter embarcado na lúdica brincadeira que costumara fazer em locais públicos. Fosse hoje teria deixado a sisudez de lado. E teria entrado no jogo de gato e rato naquela tarde. Não só tua obra até hoje merece meu respeito. A tua figura humana também.
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário