"Eu não tenho mais medo de morrer, Eu já morri antes."
Qualquer pessoa que ama cinema admira a ambição de cineastas que tentam ir além, seja de uma técnica, um gênero ou dos seus próprios limites. Aliás, o próprio cinema não existiria se não fosse a ambição de diversas pessoas ao longo da história da sétima arte, claro. Assim, é estranho ter que afirmar que o grande problema desse O Regresso é justamente a ambição de Alejandro González Iñárritu de tentar ir além de um filme de ação sobre vingança. Se admitisse seu filme como tal, o cineasta nos pouparia de meia hora de cenas desnecessárias e entregaria um filmaço. No entanto, Iñárritu quer ser Malick, quer ser Herzog, e no fim, O Regresso é apenas um bom filme que se perde de maiores voos em si mesmo.
O filme, apesar de muitos acharem ser sobre Leonardo DiCaprio lutando por seu Oscar de Melhor Ator, é sobre Hugo Glass (DiCaprio, claro), que nos anos 1820, durante uma expedição por peles de animais em território dominado por indígenas, é atacado por um urso e deixado por seus companheiros para morrer, não sem antes ver impotente o assassinato de seu filho mestiço (Forrest Goodluck) pelas mãos de John Fitzgerald (Tom Hardy), que não se importa de sujar as mãos para se livrar daqueles homens que enxergava apenas como empecilhos. A coisa toda é baseada numa história real com ares de lenda na cultura norte-americana e a essa altura você já sabe que Glass sobrevive e parte em uma busca por vingança.
E essa trama é o que de melhor O Regresso possui. A fúria animalesca de um homem que não aceita morrer antes de acertar suas contas, enfrentando fome, dor, natureza, índios e seus próprios limites pelo caminho é coisa fina e garantira o filme todo sem problemas - até porque, DiCaprio é um gigante que tira de letra esse papel: raivoso, sempre com corpo e olhos em ebulição, mesmo quando impossibilitado de se mover, o protagonista é quase uma força da natureza e mesmo que saibamos que o papel não exige tudo que o ator sabe (não deve ser nem uma das cinco melhores performances dele), é algo bem acima da média. E há Emmanuel Lubezki, sempre um espetáculo comandando a fotografia de um filme. As imagens em luz natural captadas pelas lentes do fotógrafo, além, claro, dos planos sequências que são sua marca registrada e encontram em Iñárritu um entusiasta - o ataque do urso (uma criação fantástica do departamento de efeitos visuais, aliás), sem cortes, é de um realismo e selvageria fascinante/apavorante, daquelas coisas que doem no personagem e no espectador - valem muito das duas horas e meia de produção.
Mas Iñárritu quer ser Malick, quer flashbacks e narrações em off que insiram uma espiritualidade ou algum significado a mais em seu filme. Quer ser Herzog, tornar a natureza indomável parte fundamental de seu filme. Só que Malick sempre tem algo a dizer, Iñárritu parece só um escritor de revistinha de auto-ajuda com suas metáforas obre galhos e troncos de árvore na tempestade que jamais deixam de soar intrusivas na narrativa. Herzog desafia a natureza e com o perigo mortal dessa afronta, recebe a matéria-prima de seus filmes que nascem justamente da imprevisibilidade desse confronto. Iñárritu se acovarda e deixa a natureza de pano de fundo bonito e quando quer simular um ar de ameaça impõe o confronto como se ele partisse da natureza - partículas na lente da câmera, poeira, bafo do urso, neve - e o cineasta fosse vitorioso mantendo sua câmera ligada. Ele fracassa em suas emulações e assim o seu filme fracassa junto, ao menos em partes.
Porque o cineasta mexicano tem talento. O confronto final é filmado com esmero, é urgente mas paradoxalmente calmo, com espaço para os personagens e espectador sentirem o peso da situação. E a câmera nervosa quando DiCaprio e Hardy (justiça seja feita, nada deixando a dever para o astro de Titanic, é um "vilão" complexo, com tanto instinto de sobrevivência quanto o "mocinho", daí seus erros) se atracam e se percebem similares - todos são selvagens, afinal, algo que Iñárritu, infelizmente mostra explicitamente ao invés de nos deixar perceber, só faltou a hashtag ali - cai como uma luva. E é engraçado como ao fim desse confronto, com final bem diferente do que poderíamos supor de início, o protagonista olha para a câmera e o filme se acaba, reconhecendo que com a vingança concluída não temos mais o que ver ali, o resto é no íntimo de Glass.
Tivesse Iñárritu percebido isso antes, seu O Regresso poderia ser bem melhor.
Genial. A meu ver é por ai mesmo. O filme está sendo muito superestimado.
Valeu, Conde, superestimado mesmo