Enquanto assistia Brokeback Mountain, fui premiado ao ouvir o comentário “Ai, que coisa horrível, Deus que me perdoe” por alguém que passava na sala em uma das cenas de beijo entre os dois atores. Certa vez, conversando com um outro alguém sobre o filme, disse o quanto eu gostava do longa, ao contrário da pessoa com quem falava, e perguntei se ela não havia torcido para que os dois caubóis ficassem juntos. A resposta foi “Claro que não, preferia que eles morressem”. O pior é que não foi em tom de brincadeira. Mas também já ouvi que homossexuais não se amam de verdade [!!!], que homossexualidade é uma escolha ou coisa do diabo; então ainda que seja sempre lamentável ouvir esses equívocos, difícil não se acostumar com eles. Até porque acredito que a sociedade nunca pensará diferente sobre o assunto.
Em 2009, a forma como as pessoas encaram o tema não é diferente como no ano de 1963, período em que se tem início a obra de Ang Lee. Não sabemos exatamente o que os dois homens fazem aguardando em frente a um trailler, mas apenas com esses poucos minutos de fita, a natureza de cada um já se revela demasiadamente díspar, algo que vai se tornando ainda mais claro a partir que conhecemos melhor os dois personagem. Enquanto Jack Twist encara Ennis Del Mar a espera de um simples aceno ou qualquer pequeno gesto que valha como cumprimento - afinal, ambos esperam no mesmo lugar pela mesma oportunidade de emprego -, este permanece a olhar para baixo com o cenho fechado, quase encoberto pelo chapéu. Como era de se esperar, o primeiro contado verbal entre os dois dá-se por inciativa de Jack, quando Ennis Del Mar é econômico nas palavras até mesmo ao se apresentar, se limitando apenas em dizer seu primeiro nome.
A atuação de Heath Ledger é daquelas que deixa claro o trabalho do ator em cima do personagem, tomando ciência de sua psique e não apenas reproduzindo falas do roteiro. Ledger faz de seu personagem alguém introspectivo que parece pronunciar cada palavra com um pesar tamanho, realçado pela voz grossa e pesada, como se falasse para dentro, empregada pelo ator. Quando rompe com seu silêncio, olhar nos olhos do outro parece uma tarefa tão dura quanto a sair de seu comportamento taciturno. Por sua vez, Jake Gyllenhaal entrega um personagem completamente diferente em todos os aspectos de Ennis Del Mar. Se não fosse por Jack Twist, seria provável o período de trabalho dos dois caubóis ser dominado pelo silêncio. É sempre através de Jack a iniciativa de conversarem sobre a vida pessoal de cada um e como se comporta de forma sempre mais aberta com as pessoas.
Da mesma forma, Jack Twist não somente tem noção de sua sexualidade, como já a aceita completamente. Já Ennis Del Mar, particularmente, nem acredito que seja propriamente homossexual. As pessoas costumam rir quando eu falo isso, mas vejamos - esse, aliás, é um dos pontos que acho mais interessante no roteiro, adaptado por Larry McMurtry e Diana Ossana do conto de Annie Proulx. Ennis Del Mar em nenhum momento do filme parece sentir atração por outro homem que não seja Jack Twist - algo que não acontece com este último, o qual procura em determinado momento saciar seu desejo por homem e decide viver com outro companheiro, como é informado por seu pais no fim do filme -; acho até que se ambos não tivessem se conhecido, Del Mar não teria desenvolvido um desejo homo por outro rapaz. Os instantes vividos com Jack parece um bálsamo, um refúgio, um exílio diante sua vida insatisfeita [inclusive sexual] com sua mulher, e daí surge o amor [uma força da natureza] por Jack, não necessariamente por ele ser homem, mas por ter encontrado nele amor de verdade.
Aí entra o principal ponto do filme e o que me deixa mais angustiado - assistir Brokeback Mountain e ficar deveras mal são duas coisas interligadas [que se repete não importa quantas vezes o assista]. O preconceito da sociedade sempre é muito repressivo em qualquer relação homossexual e o filme deixa isso muito evidente. Vai além mostrando crimes fatais oriundos de uma homofobia sempre irracional e intolerante. O personagem de Ledger ainda possui uma lembrança de infância que o faz temer ainda mais que essa violência faça parte diretamente de sua vida e de Jack, sendo esse um dos motivos para negar os planos de se estabelecerem como um casal, morando e vivendo juntos. Porém, o maior medo de Ennis vem dele mesmo. Em sua última briga com Jack, chega a dizer que não aguenta mais isso, deixando claro que, apesar de amá-lo, lutava para inibir o sentimento que nutria por um homem. Em todo o momento, seu maior medo era de sua própria natureza, sua vontade era deixar de sentir o amor que o mudou [ao menos com Jack, ele não se mostra mais a pessoa carrancuda no início do longa] e o faz verdadeiramente feliz.
E qual a relevância do sexo do outro para amar de verdade? O que impede surgir um sentimento verdadeiro entre duas pessoas do mesmo sexo? Quem ditou que esse amor, que nada difere dos outros, não é natural? Ennis percebeu isso tardiamente, mas percebeu. Acredito que o inesquecível “I swear” que encerra o filme seja a comprovação disso. Ele pergunta para sua filha, que está prestes a casar com um rapaz que conheceu há apenas um ano, se o ama de verdade. Após sua confirmação, Ennis decide ir ao casório da filha por acreditar, somente após viver, no amor sincero, o qual independe de tempo, gênero e qualquer outro fator. Ele jura amar de verdade, jura ser verdadeiro com seus sentimentos, jura não permitir que o medo impeça viver seu amor.
Mais do que um romance entre dois homens, Brokeback Mountain narra uma história sobre as dificuldades que o ser humano pode impor para si de amar e ser feliz, quando a única maneira de romper esse medo é amando de verdade. E escolher dois homens para viver esse amor parcialmente reprimido poderia arruinar uma premissa lindíssima se não fosse tratada da maneira como foi. Além de não se apropriar de nenhum esteriótipo, a sensibilidade que Ang Lee confere ao longa é inefável. O primeiro ato é de um primor técnico incrível; Lee narra tudo lentamente, deixa o silêncio dominar em grande parte do tempo - refletindo o estado em que ambos os personagens se encontravam inicialmente - e aproveita as paisagens para inserir uma beleza natural indizível ao longa, filmando a montanha Brokeback com planos panorâmicos e outros mais detalhados e fechados, para apresentar ao espectador o lugar mais importante para o romance dos personagens.
Não vou conseguir dizer o quanto gosto da trilha sonora composta por Gustavo Santaolalla [definitivamente, um dos melhores compositores da atualidade] e o quanto esta enriquece as belas imagens valorizadas pela perfeita fotografia de Rodrigo Pietro. Ela é tão econômica e simples, sendo praticamente toda composta por cordas, mas possui uma presença incrível e valoriza ainda mais o lirismo que Ang Lee busca com suas cenas, resultando num trabalho harmônico de som e imagem perfeito, o que faz de Brokeback Mountain um longa profundo e sensível não apenas devido ao tema, mas um longa profundo e sensível justamente pelo tratamento conferido ao tema.
Sempre quando me arrisco a escrever sobre meus filmes favoritos, acabo sendo prolixo sem dar a real dimensão da minha grande admiração pela obra. Sinto que novamente isso aconteceu. Mas sabia que iria ter essa sensação ao chegar ao fim do texto. Porque Brokeback Mountain é um dos exemplos máximos de filme que precisa ser sentido para ser adorado. É um desses filmes que me faz amar o cinema e viver um exílio curto, de um pouco mais de duas horas, mas onde sou tomado por sentimentos intensos e sentimentos nunca são fáceis de serem descritos. Para Ang Lee, deve ser fácil pôr sentimentos em imagens. Pois Brokeback Mountain é uma ode sobre o amor e, acima de tudo, cinema da maneira mais genuína e verdadeira.
http://receioderemorso.wordpress.com/
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário