Certa vez, um professor de Direito disse em uma aula na qual eu estava a seguinte frase: “O símbolo da Justiça é uma mulher cega com uma espada na mão. Vocês querem algo mais perigoso do que isso?”. Deixando de lado o caráter um tanto machista dessa colocação, podemos aqui assimilar algumas coisas sobre o papel da dita “Justiça” na nossa sociedade, especialmente quando se diz respeito às penas. E para que elas servem. Apesar de a resposta mais óbvia e sincera ser o seu caráter retributivo, desde sempre foram criados outros significados para as penas, sendo o mais célebre deles e de prevenção para futuros crimes, utilizando o delinquente em questão como um exemplo negativo, através de um doloroso castigo. Essa concepção é bem antiga, sendo que na Grécia Antiga já existia a lenda de Prometeu que, ao desafiar o deus Zeus, foi acorrentado para sempre pelo Senhor do Olimpo em uma pedra, onde um pássaro veio sempre para comer suas entranhas. Mas recentemente, foi criada a ideia da pena como um agente ressocializador, trazendo de volta o criminoso para a sociedade, para que ele possa lhe ser útil. Dessa forma todos sairiam ganhando com a pena. Pois, afinal, alguém ganha com o simples sofrimento de outrem que certa vez lhe fez mal? É disso que trata “O Segredo dos seus Olhos”, filme argentino de 2009 protagonizado por Ricardo Darín e Soledad Villamil.
Como ponto de partida da trama, temos a dupla de protagonistas Benjamin Espósito (Darín) e Irene Menéndez (Villamil), ambos trabalham em um Tribunal Criminal na capital argentina, tendo um difícil caso para solucionar: o estupro seguido de assassinato de uma bela jovem. Aqui vale uma observação boba, porém bonita. Apesar do título do filme fazer referência direta a um determinado método utilizado na investigação, vemos, no flashback, o primeiro encontro dos dois vê-se a diferença nos olhares de cada um. Ela tem olhar claros e grandes, que extravasam uma vivacidade, como se quisesse ter conhecimento de tudo ao seu redor. Enquanto ele tem olhos apertados, com as pálpebras pesadas, como se estivesse o tempo todo cansado. Esses detalhes resumem bem a personalidade de cada um e os conflitos que esse “casal” (o motivo das aspas está no fato de que nenhum deles chegou a demonstrar diretamente, ao menos no primeiro momento, o interesse pelo outro) viria a enfrentar.
A parte técnica do filme é competente o tempo todo, mas em duas sequências em especial ela se destaca. A primeira é a invasão à casa de uma velhinha, onde Espósito e seu amigo e colega Pablo buscam por pistas. O diretor Juan José Campenella abusa de uma fotografia belíssima, acompanhando suavemente o trabalho dos dois dentro da residência. A beleza aqui está tanto na iluminação em cada cômodo da casa, no modo como a luz reflete no chão, nas paredes, e nos próprios personagens, como no posicionamento da câmera, pegando, por exemplo, mais de um cômodo ao mesmo tempo, evidenciado essa diferença na iluminação. A outra cena é a famosa sequência do Estádio Tomas Adolfo Ducó, casa do tradicional time argentino Club Atlético Huracán. Aqui a câmera não é suave, mas frenética. Frenética como o sentimento dos torcedores no estádio. Frenética como a vontade de Espósito na sua perseguição ao suspeito. Frenético como a paixão que todo personagem desse filme guarda dentro de si, paixão essa que pode se manifestar de muitas formas: cantando e torcendo por seu time de futebol; bebendo de maneira compulsiva, mesmo tendo um bom emprego e uma boa via; passando anos sofrendo em silêncio por causa de um amor platônico pela sua chefe de trabalho; espancando, estuprando e matando sua antiga namorada, só para ter a sensação de possuí-la novamente; e, finalmente, alimentado dentro de si em sentimento incontrolável de vingança contra aquele que tirou o sentido da sua vida. Olhando assim, a paixão é algo bem negativo...
Perante a trama primária, que á a investigação do terrível crime, a trama secundária (a tensão amorosa entre Irena e Benjamin) pode parecer fraquinha e até uma pouco inútil para alguns. Mas ambas as tramas possuem um mesmo fim. Em um determinado momento, Benjamin diz a Irene “Como é possível viver uma vida vazia? Como é possível viver uma vida cheia de nada?”. Essa pergunta serve tanto para ele como para Morales, o esposo da jovem estuprada e morta. Ele quer Justiça, a qualquer custo. Mas que Justiça seria essa? Sua esposa pode voltar? Não. Então não pode mais existir Justiça para ele? Então, o que lhe resta? E aqui, os leitores veem que voltamos ao tema do primeiro parágrafo do texto. O vazio criado na vida desse pobre diabo foi tão grande, mas tão grande, que só há uma maneira de preenchê-la novamente. Substituindo o carinho diário que ele recebia da mulher com o sofrimento diário daquele que a tirou de seus braços. Essa é o real significado do caráter retributivo das penas: a satisfação de um sadismo coletivo. Preencher a dor do vazio dentro de nós com a dor daqueles que julgamos culpados. Isso é algo primitivo, por isso, está oculto dentro de nós e pode ser liberado a qualquer momento, de maneira instintiva, como no momento em que Benjamin agride o criminoso quando este bate em Irene. Mesmo imobilizado e caído no chão, ele não parava de agredi-lo. Precisava se satisfazer com o sofrimento dele.
Mas nem só se sofrimento alheio esse vazio pode ser preenchido. A vida de Benjamin era como sua máquina de escrever que não tinha a tecla “a”: faltava sempre alguma coisa. Ele parecia ter medo de encaixar isso que faltava na sua vida, assim como estava escrito “Temo” em uma nota. Esse é o segredo que ele guarda naqueles olhos cansados: a paixão por aqueles outros olhos grandes e belos. Basta só ter coragem em colocar a letra “a”, aquela mesma que faltava na sua máquina de escrever, no meio da maldita palavra “Temo”, para que não exista mais vazio em sua alma, nem em sua vida.
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