Wadjda (Waad Mohammed) não é uma menina como as outras da sua idade. Rebelde e perspicaz, sonha em ter uma bicicleta e fará tudo para conseguir alcançar o seu objetivo. Mas numa sociedade conservadora infestada por muitos preconceitos e superstições exageradas, Wadjda terá de se debater com vários sarilhos – mas nada disso a impedirá de continuar a sonhar e de lutar pela tão desejada bicicleta.
O Sonho de Wadjda foi a primeira obra escrita e realizada por uma mulher saudita, e o primeiro título a ser rodado integralmente na Arábia Saudita. Por isso, Haifaa Al-Mansour não só assinou um feito notável em termos artísticos, como também a nível histórico e social. Não é todos os dias que algo do género chega a terras lusas: estamos perante o início de uma nova forma de se fazer Cinema, num país que, infelizmente, continua a defender rígidas e apertadíssimas leis fundamentalistas e discriminatórias.
O que faz a realizadora, com as circunstâncias e condicionamentos da Arábia Saudita e a história (simples, mas bonita) que tem em mãos, não poderia ser mais apropriado: com a coragem de ser a primeira mulher a realizar um filme naquele país, Haifaa Al-Mansour aproveita para dissecar todas as desigualdades entre sexos que se sentem diariamente naquela cultura, acompanhada por uma ligação demasiado dependente às ideias religiosas, presentes em todos os pormenores do quotidiano (sendo que a maioria deles podem causar choque a nós, espectadores de países ocidentais).
Ao explorar uma sociedade muito restrita e contraditória, O Sonho de Wadjda aproveita a coragem das suas intenções para nos trazer uma experiência precisa e direta sobre os valores árabes ancestrais na contemporaneidade. Tal como a protagonista, que não se preocupa em prever as “feridas” e ruturas que terá de provocar para conseguir a tão amada bicicleta, também Al-Mansour decide, corajosamente, não ceder às ordens do Cinema convencional do seu país, mostrando a realidade tal como ela é, sem ter a ausência de alguma coisa ou a presença exagerada de situações emocionais.
Não é difícil prever que o espectador irá estranhar os hábitos de Wadjda e dos seus amigos, colegas e familiares, em que os homens dominam as mulheres sem qualquer tipo de resistência, por ser uma “regra” muito assente na comunidade, que não vê a discriminação do sexo feminino, tantas vezes cometido, como um delito grave. Mas se O Sonho de Wadjda denuncia os problemas da Arábia Saudita, também não hesita em demonstrar que, no meio dos delitos sociais, há um dia a dia que tem de ser vivido, apesar das circunstâncias tão politicamente peculiares (a tecnologia, felizmente, começa a aparecer nesta cultura atrasada – mas infelizmente, em muitos casos, continua a ser usada em prol da moral e costumes que quem está “lá em cima” pretende divulgar). Só Wadjda ultrapassa a via da normalidade por não querer ser como as outras, não se deixando controlar pela opinião das pessoas que a observam constantemente, tentando medir todos os pequenos passos da menina.
Rimo-nos da posição que Wadjda toma em relação àquele mundo e às ideias que todos persistem em perpetuar e que não deixam espaço para a mudança acontecer. Talvez pensemos que ela não passa de uma rapariga ingénua – contudo, esta personagem interroga vários dos dogmas tão severamente instituídos, e simboliza todos aqueles que não querem parar de mudar o Mundo, mesmo que tenham o próprio Mundo como a maior das adversidades. Porque consegue ser mais do que um bonito drama social, O Sonho de Wadjda é um filme sobre o poder da Mulher numa sociedade de imposições e constrangimentos, com boas interpretações e uma capacidade admirável de provocação e crítica subtil e inteligente.
E apesar de ser um filme politicamente acertado e urgente, só no desfecho é que percebemos tudo: afinal, o que Wadjda sonhava ter não era a bicicleta, mas a esperança da liberdade no meio do colapso nacional e universal. Uma das estreias invulgares e duradouras deste ano de 2014, e um brilhante pontapé de saída para Haifaa Al-Mansour.
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