É o novo filme de um dos membros dos Monty Python, autor de excentricidades lendárias como Brazil – O Outro Lado do Sonho e A Fantástica Aventura do Barão. A filmografia de Terry Gilliam é irregular, variando constantemente entre filmes mais e menos interessantes, mas O Teorema Zero está entre os grandes títulos da sua carreira, e é também um dos filmes mais imaginativos de 2014.
Num futuro não muito distante, em Londres, Qohen Leth (Christoph Waltz), um génio da informática obcecado pelo seu trabalho, está atormentado por uma crise existencial que o leva a refletir sobre aquilo que faz e o funcionamento do sistema social e burocrático em que está inserido. Ele vive isolado numa antiga igreja incendiada, e está sempre à espera de um telefonema, que crê que pode ser a solução para todas as suas dúvidas e angústias filosóficas. Qohen começa a trabalhar em casa num projeto misterioso que tem como objetivo resolver o teorema zero e descobrir, afinal, se há ou não alguma explicação para a existência das coisas. Contudo, o seu desesperante trabalho é marcado pela aparição de vários visitantes, que lhe revelam alguns dos maiores segredos que envolvem o projeto e a sua implicação no mesmo.
Terry Gilliam regressa às fantasias distópicas e sociais futuristas depois de Brazil e 12 Macacos, e volta a acrescentar a essência criativa, excêntrica e insólita que caracterizam estas suas narrativas que têm tanto de ficção como de crítica à vida quotidiana. O Teorema Zero segue, à partida, algumas linhas básicas que nos recordam Brazil, mas acaba, apesar disso, por ir mais além do que essa história futurista poderia permitir. Não nos esqueçamos que o filme mais conhecido de Gilliam data da década de 80, época em que smartphones e redes sociais não passavam de delírios dos mais lunáticos escritores de ficção científica.
Quer na sua sátira burlesca e detalhada ao poder das novas tecnologias nas relações humanas do século XXI, quer na ilustração do uso dessas mesmas tecnologias na criação de novas formas de divertimento e prazer (que acabam também por desconstruir e reconstruir os mecanismos de comportamento que acabamos por ter com quem nos rodeia), O Teorema Zero elabora também uma reflexão sobre a presença do Big Brother, dispositivo Orwelliano que tudo vigia a todo o momento, mas atribui-lhe uma outra faceta que não deixa de ser curiosa: é que com as novas tecnologias, esse “Grande Irmão” não é apenas da responsabilidade daquela entidade misteriosa.
Nós próprios também o fazemos, porque com selfies, likes, tweets e outros que tais, estamos sempre a colocarmo-nos em modo de auto-vigilância, no grande mundo da internet em que estamos cada vez mais ligados tecnologicamente, mas cada vez menos emocional e fisicamente. Temos imenso gosto em nos mostrarmos aos outros, mas isso é feito através dessas redes tão maciças e obsessivas que acabamos por dar, aos outros, cada um dos passos que conseguimos cumprir na nossa vida. E não será essa vigilância tão ou mais perigosa, para a existência de cada indivíduo, do que a existência “solitária” do vigilante poderoso, que se encontra acima de todas as outras coisas?
Daí que O Teorema Zero possa ter momentos do mais surreal, bizarro e inacreditável humor, muito patente também naquilo que já é igualmente habitual nos filmes de Gilliam (os cenários incrívelmente kitsch e de cores muito vivas, onde se misturam vários elementos e estilos cénicos e arquitetónicos), mas é no seu lado ativista e crítico que encontramos a força maior da obra. Porque no meio da “estupidez”, encontramos sempre uma enorme e profunda seriedade, nas palavras e nos gestos das personagens.
A personagem de Christoph Waltz (numa interpretação extremamente interessante), não consegue falar em “eu”, por motivos pessoais, e por isso refere-se a ele próprio como “nós”. Uma das frases mais fortes que pronuncia no filme é “nós estamos a morrer”. E pode ter um significado ambíguo, mas é mais provável que Qohen esteja a falar de toda a humanidade. E lá está: de facto, o filme fala disso, de uma sociedade que está a morrer, porque os avanços do progresso fazem com que esta se encontre condicionada e/ou submetida a uma série de implicações sociais e psicológicas extenuantes. E nesse caos complexo, só nos resta tentar procurar outras soluções, e as respostas que sempre a Humanidade quis descobrir, e que podem alterar todo o status quo (e no caso do protagonista, isto é representado pelo tal telefonema que nunca mais chega).
Mas o que é o motor da sociedade avant-garde e modernaça do futuro inventado por Terry Gilliam acaba também por ser aquilo que a destrói na sua essência. E com isso, a fita torna-se numa espantosa reflexão filosófica e existencial sobre uma sociedade em permanente mudança, em que o poder da tecnologia a ser cada vez mais presente, para o bem e para o mal. E num mundo onde a queda da privacidade é cada vez maior (algo que, em parte, o cidadão comum ajudou a criar), isso tenta ser recompensado pela criação de ilusões emocionais agradáveis que não dão realmente nada – mas que servem para podermos “ir vivendo”, no meio de tanta desgraça e tragédia que preferíamos não conhecer. Essas ilusões, que fazem com que Qohen não consiga distinguir totalmente a realidade da imaginação (algo que pode também confundir o público), fazem-nos pensar na vulnerabilidade acrescida que a Tecnologia proporciona aos seus utilizadores.
Graças a essa tecnologia, a personagem de Waltz consegue ver a sua integridade mais facilmente destruída, e o poder da mensagem social de Brazil ganha, com O Teorema Zero, uma outra dimensão, maior e mais aterrorizante. Contudo, tal como todos os outros filmes de Terry Gilliam, o lado esteticamente invulgar pode afastar alguns espectadores de uma pérola como esta. Mas se nos deixarmos levar por este mundo aparentemente estranho (mas que tem muito do Real), podemos acabar por ser surpreendidos, e descobrir este lado obscuro e sombrio que o incrível e louco aspeto visual da obra tenta esconder. Porque Gilliam soube, mais uma vez, disfarçar com (falso) humor as grandes questões dramáticas que continuarão a perseguir-nos para todo o sempre, através de um filme encantador, envolvente, inteligente e deslumbrante.
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