Em 1993, Ferrara surpreenderia o universo cinematográfico ao convidar Madonna para seu novo trabalho, Olhos de Serpente (Dangerous Games, 1993), que tinha Harvey Keitel no papel principal, após a bem sucedida parceria que fez com o diretor em Vício Frenético (Bad Lieutenant, 1992). O resultado foi um filme emocionalmente devastador, totalmente abrasivo e desinibido. A cantora, por sua vez, odiou o resultado final e atacou o filme antes que o processo de edição fosse concluído, fazendo uma espécie de boicote - que foi muito bem sucedido - pois arruinou qualquer chance que o longa tinha de fazer sucesso nas bilheterias.
Só posso me sentir envergonhado por terem levado as críticas tão a sério. Aqui, o cineasta entrega um de seus melhores trabalhos, com um ritmo frenético, uma carga emocional impressionante e uma autoanálise de perder a cabeça. Talvez seja um dos filmes mais enxutos de Ferrara que, sem rodeios, aborda temas complicados e confronta diretamente o espectador, pois os problemas e pensamentos apresentados por seus personagens são bastante comuns no dia-a-dia das pessoas, tais como: medo, ódio, luxúria e egoísmo.
A trama do filme gira em torno de Eddie Israel (Harvey Keitel), um diretor de cinema que está trabalhando em seu mais recente longa-metragem. À partir daí, ele começa a refletir as ações de seus filmes na vida real, especialmente quando ele começa um caso com a protagonista do longa, Sarah Jennings (Madonna).
É interessante como Abel mantém o foco no filme dentro do filme, que é chamado de "Mother of the Mirrors", onde sua marca autoral é extremamente sentida, principalmente nas cenas em que Eddie intimida os atores que trabalham pra ele. O roteiro escrito por Nicholas St. John, colaborador habitual de Ferrara, é de um desassombro impressionante, retratando a personagem de Madonna como uma estrela esgotada, mas que ainda possui enorme influência sobre seus fãs. E o indivíduo vivido por Keitel é novamente alguém que personifica sua visão niilista e seus pensamentos sombrios sobre a condição (ou seria degradação) da raça humana.
Aliás, muito do mérito da fita vem da entrega de seu protagonista, em mais um papel onde Ferrara o coloca novamente para confrontar-se com seus demônios, e da coragem de Madonna em despir-se de sua vaidade para entregar sua melhor performance. E aqui, fica ainda mais notória a influência de Cassavetes nos trabalhos do cineasta, rodando tomadas longas com intuito de encontrar momentos de real improviso (a cena que Keitel grita com Madonna é realmente espetacular), com objetivo de capturar emoções verdadeiras, usando ainda tomadas documentais, o que estreita ainda mais a relação entre filme x realidade.
O diretor chega a colocar sua mulher, Nancy Ferrara, como esposa de Eddie no filme, aonde a mesma realmente vai do céu ao inferno ao lado de um homem tão instável, grosseiro, mas que também pode proporcionar belos momentos juntos de sua parceira. E nesse ponto, Ferrara levanta questões interessantes, não apenas sobre sua vida pessoal, mas sobre a ideia que as pessoas possuem sobre a vida perfeita de consagrados artistas, mostrando que todos nós temos problemas, até mesmo os grandes astros "intocáveis" de Hollywood.
Mas afinal, aonde o diretor queria chegar? Catarse? Lição de moral? A resposta certamente não corresponde à felicidade! Na verdade, ao final da projeção, o que fica no ar é o aroma do eterno niilismo e amoralidade presente em sua bela filmografia, que talvez aqui, esteja ainda mais pungente do que em qualquer outro trabalho de sua autoria. E, ao subir os créditos finais de Olhos de Serpente, Ferrara descobriria que a arte já é uma forma de exploração.
Análise irretocável, meu caro. Parabéns!
Obrigado Barbara, vindo de você, só posso ganhar o dia. Hehehe 😁
Que moral, hein, Chicão??
Moral mesmo, Barbara é minha cinéfila favorita! HAHAHAHA 😁