Não deixa de ser uma bela hipocrisia burguesa a produção de melodramas que apresentam a miséria e o sofrimento das classes menos abastadas. Desde os folhetins e romances do séc. XIX até as produções audiovisuais vinculadas ao Cinema ou à Televisão, tais produções não deixam de se aproveitar do sofrimento histórico do explorado para a elaboração de uma trama apelativa ou de forte comoção, cujas personagens, vulneráveis e passivas, são de todo vitimadas pela sua completa má sorte. Desse modo, concomitante à decadência (ou à redenção) desses desafortunados “coitadinhos”, há a negligência dos motivos pelos quais essa miséria existe e permanece, do que levou essas personagens a tamanho desamparo, exploração e falência – e isso é resultado tanto da iniciativa de autores burgueses majoritariamente preocupados com o potencial drama de sua narrativa quanto da iniciativa de militantes de classe média que utilizam a miséria apenas como cenário para a (frágil) defesa de alguma causa específica (como Jean Claude Bernadet expõe em seu “Brasil em Tempo de Cinema”).
Portanto, é interessante como Luis Buñuel, em seu “Os Esquecidos”, subverte esse “melodrama da miséria”, na medida em que provoca o conforto e a sensibilidade de seu público burguês, aqui reconhecido e denunciado. Como se fosse uma versão mexicana do “Capitães da Areia” de Jorge Amado, o filme acompanha os infortúnios sofridos por uma agressiva gangue de jovens delinquentes, oriunda dos subúrbios da Cidade do México. A partir dessa sinopse, portanto, o longa flerta constantemente com o melodrama – seja pela gritante tragédia de certos episódios da narrativa, seja pelos acentos da apaixonada trilha sonora de Rodolfo Halffter (baseada em temas originais de Gustavo Pittaluga). No entanto, esse melodrama é rapidamente boicotado pela natureza de suas protagonistas. Como já bem simbolizado na brincadeira da tourada, na qual o menino imitando o touro se dirige furiosamente contra a câmera, os “pobres miseráveis” de Buñuel estão longe de serem os “coitadinhos” do drama burguês. Maliciosos, zombeteiros e potencialmente violentos, os meninos de rua não hesitam, por exemplo, em humilhar e mesmo agredir um pobre sujeito com as duas pernas amputadas – e o líder Jaibo (vigoroso Roberto Cobo) quase se converte em antagonista da trama tamanho seu rancor, ganância e impetuosidade (um temperamento que, naturalmente, não demora a sair de seu próprio controle).
Um bom exemplo dessa subversão é o pequeno Ojitos (terno Mário Ramírez). Em sua primeira cena, o menino chora sentado no que parece ser uma fonte de água benta (ao menos a estrutura é semelhante à das igrejas). Vulnerável e apavorado, o garoto, um pequeno camponês, acaba de ser abandonado pelo pai, e sua ameaçada inocência, já encurralada pelas malícias e maldades do meio urbano, seria um ótimo ponto de partida para um digno melodrama burguês. No entanto, mais a frente vemos o mesmo “anjo” quase apedrejando um músico idoso e cego, em um genuíno ímpeto de raiva e violência – e o mesmo cego, a princípio impiedosamente agredido pelos meninos de rua, logo também se revela como potencial explorador e violentador dessas crianças. No entanto, do conjunto dessas agressivas desconstruções dos maniqueísmos, talvez a mais incisiva delas seja a referente à figura materna: a mãe de Pedro (Estela Inda), a despeito das particularidades de sua história (reconhecidas por Buñuel) e das idealizações do filho, consegue ser uma mulher fria, ríspida e terrivelmente implacável, mesmo perante as carências e fragilidades do primogênito rebelde. E ao despertar o desejo do jovem Jaibo ao mesmo tempo em que passa a igualmente desejar o garoto, a figura materna tem sua “aura” definitivamente desafiada quando se revela como agente e objeto sexual (e é singular que para suas tentativas de flerte com a matriarca, Jaibo conte sobre a vaga lembrança da imagem casta e afável de sua falecida mãe).
Mas além da narrativa que nega o unilateral – e que elege como protagonista um garoto vitimado pela complexidade de seus sentimentos e impulsos, o trágico Pedro (intenso Alfonso Mejía) –, “Os Esquecidos” também instiga seu espectador por meio da força, denúncia ou subversão particular de certos quadros e sequências. Vemos, por exemplo, as crianças miseráveis que movem o carrossel no qual as crianças burguesas tanto se divertem, e mais a frente nos deparamos com a violência inesperada e angustiante do assassinato de uma galinha (talvez até mais marcante do que o homicídio acidental do começo da narrativa). Nesse sentido, embora seja constantemente mencionado como uma produção mais realista de Buñuel, “Os Esquecidos” em verdade aproxima-se da estética surrealista tão abraçada pela filmografia do cineasta. O surrealismo, no caso, não se trata apenas de uma série de imagens incoerentes, oníricas e bizarras; o surrealismo se baseia na provocação do olhar burguês, na elaboração de imagens que, explícita ou sutilmente, perturbem a censura burguesa, revelando conteúdos ou leituras indesejadas e quebrando com as convenções da visão – e não à toa, a maior parte dessas transgressões relacionam-se à sexualidade, tão reprimida pela sociedade burguesa e cristã. Portanto, na busca pela liberdade imagética do inconsciente, o surrealismo combate esses recalques justamente em prol do incômodo do olhar conservador e hipócrita.
“Os Esquecidos” faz isso na maior parte do tempo, seja pela supracitada desconstrução dos maniqueísmos, seja pelas inquietantes entrelinhas e sugestões de determinadas imagens. Um exemplo é a latente conotação sexual do quadro em que vemos as alvas coxas da casta Meche (Alma Delia Fuentes) sendo banhadas pelo leite (um líquido branco) recém-ordenado. E o que dizer da instigante cena em que um homem, antes de ser intimidado por um policial, oferece dinheiro ao pequeno Pedro em troca de um aparente favor? Buñuel estrategicamente oculta o diálogo entre os dois pelo maior volume da trilha sonora, mas mesmo a partir dessa dissimulação da trilha já podemos inferir a natureza do favor exigido pelo sujeito. Portanto, o cineasta não só vislumbra, mesmo que brevemente, um tabu ainda maior do que o da miséria, como também intensifica o incômodo desse tabu ao forçar o espectador burguês a ele próprio reconhecer o que está sendo sugerido pela tela – e tal feito também se aplica a outras sequências nas quais o corte da montagem e o novo enquadramento da câmera ocultam uma ação que está prestes a acontecer e que, dessa forma, acaba por se concretizar apenas na imaginação do espectador (como a porta se fechando após o definitivo flerte entre Jaibo e a mãe de Pedro).
Por fim, se o filme parece investir em simbologias próprias como a galinha, os prédios em construção, o forno da oficina e o próprio idoso cego, o surrealismo do longa é enfim levado às últimas consequências na memorável sequência do pesadelo de Pedro – e nessa passagem específica, é belo como Buñuel, além da provocação ao olhar burguês, arma-se do inconsciente para se aproximar das inseguranças e traumas do jovem miserável. No entanto, apesar dessa acidez surrealista, “Os Esquecidos” talvez ainda falhe em apontar os motivos de tantas carências e explorações. A despeito da hipocrisia do assistente social que ouve horrorizado o relato da matriarca mas que não toma maiores atitudes perante essa história, continuamos a ver uma espécie de microcosmo a parte, onde as personagens, segregadas da realidade burguesa, lutam e definham-se entre si em meio a seu cenário específico e praticamente isolado. Mas por outro lado, se Buñuel no conjunto de sua obra denunciaria os vícios e hipocrisias da burguesia, em “Os Esquecidos” o cineasta não deixa de sutilmente denunciar o distanciamento do burguês perante a esse mundo de misérias – e nisso se inclui uma crítica à hipocrisia do próprio espectador do filme.
Mais especificamente, Buñuel reconhece que está lidando com um público burguês, e além de desconfortar esse público com suas imagens perturbadoras, o cineasta ressalta a distância que o espectador (e ele próprio) possuem em relação a esse quadro de miséria. Apesar de alguns pontuais closes (que justamente parecem nos intimidar), as personagens mantém-se constantemente distantes da câmera e, consequentemente, do espectador – e temos até sutis contra-plongée que parecem aumentá-los de tamanho, em detrimento do alcance de nossa visão. Esse distanciamento é finalmente denunciado na cena em que Pedro, após tomar a gema de um ovo, joga a casca diretamente na câmera, quebrando o ovo na lente da objetiva. Ou seja, a personagem denuncia não somente a presença da câmera mas a distância daquele que o contempla. Apenas observamos essa série de misérias e decadências: mesmo lamentando a tragédia dos pobres meninos de rua, não tomaremos parte daquela situação, muito menos interferiremos.
Buñuel, portanto, também denuncia a hipocrisia do melodrama burguês e talvez a hipocrisia de sua própria câmera. A miséria continua sendo uma matéria-prima para a obra de arte a ser consumida majoritariamente pela classe média pra cima. O menino de rua continuará desamparado, esquecido e violentado, mesmo sendo o protagonista do romance ou a estrela do cinema: a diferença, desta vez, é que Buñuel finalmente reconhece a sua solidão.
Ótima crítica.