Dentre as várias características que o diretor Bernardo Bertolucci possui, o tom sensual/poético de seus filmes é possivelmente a mais marcante delas. E “Os Sonhadores” é, com certeza, um filme que traz, de forma bastante intensa e ousada, este traço. O longa, um dos mais controversos e criticados do diretor, foi bastante desvalorizado por uma gama de críticos, inclusive recebendo alguns adjetivos bastante injustos como “pornográfico”, por uma parcela deles. Apesar disto, também muitos reconheceram as qualidades e receberam muito bem a obra de arte que Bertolucci tinha concebido. Mas como arte, as diferentes interpretações eram possíveis, e alguns dos pontos de vista consideraram o trabalho como “gratuito” ou até “vazio”. Mas o fato é que às vezes precisamos olhar uma jóia de certa perspectiva, para notar o brilho incidir no ângulo correto, demonstrando assim, sua potencial beleza.
A história é ambientada em Paris, durante a Revolução Estudantil de 1968, em que manifestações contra um sistema antiquado e opressor de ensino acabaram tomando enormes proporções, principalmente devido à repressão do governo de Charles de Gaulle, resultando numa greve geral por parte dos estudantes e trabalhadores daquele país. O cenário aqui trabalhado nos leva, naturalmente, a pensar na construção de uma análise do tipo de jovem a presenciar e a fortalecer aquele movimento, um estudo do perfil destes quanto aos seus objetivos, medos e fraquezas. Porém, fica claro que o diretor segue um caminho diferente, ao explorar de maneira bastante íntima os desejos e as personalidades um tanto atípicas daqueles três jovens apaixonados por cinema, pondo temas e pensamentos revolucionários mais para segundo plano. Também não podemos esquecer que estamos falando da adaptação de um romance, “The Holy Innocents”, escrito por Gilbert Adair, em 1988, e alguma fidelidade ao texto já era esperada. E aí é aonde desagradou a muitos, pois de certa forma estas escolhas deixaram, para estas pessoas, a impressão de um trabalho vulgar, superficial, cujo objetivo se limitava a um prazer visual. Mas é muito importante, ao assistir o filme, aceitar a perspectiva que nos é oferecida, a opção de "dissecar" o interior daqueles personagens e seus relacionamentos, mesmo que de maneira não tão profunda. E porque não aproveitar as diversas sensações e o poder artístico imenso contido em cada minuto do longa?
A parte visual é indiscutivelmente poderosa, capaz de provocar desejo, espanto e até repulsa. Certas cenas, apesar de simples, possuem um poder hipnótico de difícil descrição, como a que Matthew observa as medidas de um isqueiro se encaixarem em diversos desenhos e objetos ao seu redor. A ousadia caminha junto com a poesia (típico do diretor), mas desequilíbrios ocorrem em alguns momentos, e possivelmente um pouco de sutileza atenuaria o aspecto cru destas poucas passagens. Há também algumas cenas bem desnecessárias, como a de uma determinada “refeição” que os jovens fazem, incluída a parte do lixo. Mas se o objetivo era causar sensações a partir destas imagens, fica até entendível, em parte. Apesar de várias boas ideias de referências a filmes (como já foi dito, os três são apaixonados por cinema), nem todas soam naturais, e outra vez a sutileza poderia ter ajudado.
Os atores foram muito bem escolhidos, encaixados quase que perfeitamente nos perfis de seus personagens. O tom mais “adulto” dos irmãos Isabelle e Theo (interpretados por Eva Green e Louis Garrel), contrasta bem com a “ingenuidade” do americano Matthew (Michael Pitt). E a partir disto, são construídos momentos incrivelmente provocantes. Durante todo o filme, imaginava a coragem daqueles intérpretes, tão novos e já encarando papéis que exigem tanta maturidade, sem demonstrar estarem desconfortáveis ou inseguros (na maior parte do tempo). E aí nos lembramos de “O Último Tango em Paris” (1972), em que a atriz Maria Schneider, com apenas 20 anos, contracenou “sensualíssima”, com o mais que experiente Marlon Brando, de 48. A partir disto, percebemos como Bertolucci costuma desafiar os seus atores em diversas situações, a enfrentarem os mais diversos tabus.
“Os Sonhadores” é um filme forte, belíssimo e que precisa ser encarado de uma maneira tal a entender os rumos tomados pelo diretor, ainda que o final deixe a desejar, por ser deslocado à ideia trabalhada até ali, além de outras falhas já citadas. Mas certamente as muitas qualidades, as cenas inesquecíveis e a experiência como um todo tornam esta obra bastante gratificante e diferenciada, uma pequena jóia única.
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