QUE ATIRE A PRIMEIRA PEDRA.....
Após um início bastante promissor (e premiado) como diretor com o muito bom Entre Quatro Paredes (In The Bedroom, 2001), Todd Field (antes um desconhecido coadjuvante em filmes bem medianos) nos brinda com uma obra ainda superior. Pecados Íntimos (Little Children, 2006) não é só o mais perto que alguém conseguiu chegar de Beleza Americana (American Beauty, 1999) – a referência no gênero – como também um dos melhores filmes dos anos 2000.
Desnudar a intimidade dos cidadãos de classe média-alta da sociedade norte-americana sempre foi um dos assuntos preferidos do cinema, principalmente depois do excepcional filme de Sean Mendes. Depois dele, não só filmes, mas séries de TV começaram a abordar este tema com maior ênfase e coragem. E isso é o que não falta em Pecados Íntimos: um olhar frio e despudorado na vida íntima das famílias da comunidade aparentemente perfeita e saudável onde os protagonistas vivem.
Para adentrar nas casas e vidas dos personagens, o roteiro de Todd Field e Tom Perrota (autor do livro no qual o filme é baseado) utiliza o olhar das pessoas alvo do estudo sobre a chegada de Ronnie McGouvan (Jackie Earle-Haley) à vizinhança. Preso por exposição indecente à menores, Ronnie apresenta visíveis distúrbios mentais e sexuais, e tem consciência disso, mas se mostra incapaz de algum progresso, muito por conta de sua mãe que parece muito mais interessada em mantê-lo como um bebê em um berço de medo e afeto do que tentar ajudá-lo clinica e psicologicamente, como se não aceitasse a condição do filho. Mas o roteiro deixa claro o amor dela por Ronnie e o respeito e carinho deste para com a mesma.
A partir da notícia da chegada de Ronnie, Field nos apresenta Sarah (Kate Winslet) e Brad (Patrick Wilson), casal que tomará a frente como protagonista do filme. Com mestrado em literatura americana, Sarah vive alheia às preocupações e futilidades da vida de suas vizinhas e companheiras de amenas tardes com os filhos no parque. Muito mais interessada em ler seus livros e repousar a mente cansada e preocupada, Sarah pouca ou nenhuma importância dá aos assuntos nada relevantes das outras mães. Assuntos esses que são deixados completamente de lado ao perceberem a presença de Brad e seu filho no parque. Referindo-se à ele como ‘’o rei do salão’’, estas mulheres exemplares e esposas fiéis declaram seus pensamentos e desejos mais sórdidos com relação ao pai bonitão. Eis que surge o desafio de Sarah dirigir-se ao encontro de Brad e trocar telefones. A moça não só consegue isto, como também arranca um beijo do rei do salão na frente de todas as mães e seus filhos – incluindo os filhos de Brad e Sarah. A revolta e indignação das outras mães com este ato de adultério é imediata e já levanta o primeiro questionamento do filme: aquelas mulheres sentem-se à vontade ao confessar seus sonhos e desejos eróticos com relação a Brad, desmerecendo seus respectivos maridos, mas condenam o ato em si que elas tanto desejam e sonham. Traição não se dá somente no ato consumado, mas também no desejo. Dividir um leito conjugal com alguém desejando e fantasiando com outra pessoa é sim, traição. Quando se ama alguém não se deixa de reparar na beleza ou nas qualidades de terceiros, mas não mais nutrimos desejos carnais ou afetivos pelos mesmos. Estas mulheres que tanto julgaram e condenaram Brad e Sarah mantém-se casadas apenas em nome de uma instituição que falida que nem mesmo elas acreditam mais, pois até para fazer sexo com seus maridos precisam marcar hora com antecedência (uma delas chega a comentar que seu marido dormiu durante uma relação e sequer percebeu).
E é aí que o roteiro de Pecados Íntimos ganha enorme força: no olhar tridimensional sobre o caso entre Sarah e Brad. Apesar de perfeitamente compreensível dentro do contexto em que se encontram os dois personagens, com casamentos desmoronando aos poucos e envoltos em uma infelicidade latente e aparentemente inacabável, o adultério cometido por ambos é reprovável em todas as esferas. E não estou falando de falso moralismo ou um modo de agir politicamente correto. Falo na fuga do confrontamento dos problemas por parte de ambos. Absolutamente despreparada, tanto para o matrimônio quanto para a maternidade, Sarah sonha com um conto de fadas em que um príncipe encantado virá resgatá-la de seu casamento triste e sem qualquer paixão. Reclusa em seu quarto e aparentemente sem a menor vontade de usufruir dos talentos que possui, Sarah atinge o ápice de sua insatisfação ao descobrir que seu marido transferiu seu apetite sexual para a pornografia digital. Mesmo assim, infeliz e insatisfeita sexualmente, Sarah não toma a frente da situação, como se fosse incapaz de resolver uma situação delicada com a pessoa que escolheu para viver o resto da vida – em tese – e acaba descontando em sua pequena filha, com uma dose insensível de impaciência com a menina. Ao planejar fugir com Brad, em momento algum Sarah leva em consideração fatores importantes para um relacionamento que vão além de sexo e amor. Por exemplo: se nem ela nem Brad trabalham, com o que se sustentariam? Para onde iriam? Como ficariam seus filhos? Sarah está apenas preocupada com sua satisfação pessoal e carnal.
Tão inconseqüente quanto (Sarah) é Brad. Completamente irresponsável, deixa que sua esposa Kathy (Jennifer Connely) assuma o sustento da casa enquanto ele faz o papel não de pai ou mãe, mas de um simples irmão mais velho para seu filho. Formado em direito, Brad fracassou por duas vezes na prova da Ordem dos Advogados, mas sua esposa nutre esperanças de que ele conseguirá desta vez. Porém, Brad não parece muito entusiasmado com a idéia de tornar-se jurista e sai toda noite não para estudar na biblioteca, como diz à sua dedicada esposa, mas sim para admirar adolescentes praticando manobras de skate no parque, como se estivesse parado no tempo e relutasse em crescer. Ao perceber a redução do desejo sexual de sua esposa por ele (afinal, não se ama nem se deseja aquilo que você não admira, e que mulher admiraria um homem como Brad?), ao que ela prefira manter o filho no leito conjugal com demasiada freqüência, Brad acaba buscando em Sarah o alívio carnal que tanto procura. Brad não deixa de reparar – e até salientar - que Sarah não chega aos pés de Kathy no quesito beleza (afinal, a deslumbrante Connely destrincha com a xoxa Winslet, convenhamos), mas pode fantasiar em sua mente e realizar seus desejos. Aliás, esse é um estado curioso do adultério, não só no filme, mas na vida real também, onde as pessoas parecem ter medo de praticar sexo não convencional com seus parceiros e buscam estas práticas com estranhos. A cena do debate do livro Madame Bovary, de Flaubert, em que Sarah relembra seus momentos com Brad, a pratica do sexo anal é levantada como se ‘’só permitida fora de uma relação tão respeitosa como o casamento’’. Nas mãos de Brad, Sarah não passa de um instrumento de prazer sem rosto, nem gosto, nem cheiro, se não aquele que ele queira que ela tenha naquele momento em sua fantasia.
Se há uma personagem que pode ser considerada como vítima na história, esta personagem é Kathy. Apaixonada por seu marido, seu filho e seu trabalho, a moça trabalha exaustivamente para manter não só a casa e a família, mas também os (falsos) sonhos de seu marido. Mesmo quando ela passa a desconfiar (ou melhor, ter certeza) do caso amoroso de Brad e Sarah, Kathy não deixa de lutar para que seu casamento dê certo.
Principalmente nestes dois núcleos, outro mote é levantado no filme: porque os homens de hoje se mostram tão impotentes diante de suas mulheres. Será reflexo direto do crescimento da independência e auto-suficiência feminina? Por que estes homens se mostram muito mais à vontade entre outros homens do que em sua vida conjugal, onde demonstram enorme medo e receio de despirem-se de suas couraças de testosterona e virilidade? O filme aborda isto de forma espetacular nas cenas das partidas de futebol da liga noturna da comunidade, retratando aquele ambiente como de pura selvageria e brutalidade, onde homens exibem com orgulho seus corpos suados e nada atléticos em que cada pancada dada ou recebida representa comando e auto-afirmação. Engraçado é perceber que, depois de tanto clamarem por mulheres mais independentes, os homens sintam-se tão ameaçados por elas. Assim como as mulheres que estão apavoradas com a falta de homens ‘’HOMENS’’ nos dias de hoje, pois estes são verdadeiros leões fora de casa, mas dentro dela, onde suas esposas esperam e desejam encontrar tais feras (não confundam feras com BESTAS, estou falando de leões, não de cavalos), eles não passam de bichinhos domesticados de um zoológico ou petshop qualquer.
Neste seguimento do filme encontramos Larry, o ex-policial valentão do bairro que se auto-proclama vigilante da sociedade, passando a dedicar seus dias e noites a perseguir todos os passos de Ronnie. Tão preocupado com o zelo do bairro, Larry esquece-se de cuidar da própria casa. Impossibilitado de trabalhar por motivos psicológicos, sua mulher arca com a tarefa de prover o sustento da família enquanto Larry parece não estar disposto a procurar outro tipo de trabalho – além de, de vez em quando, descontar algum acesso de fúria sobre sua mulher e filhos. Larry personifica também mais um fato muito bem levantado pelo roteiro: pagamos muito caro por erros e atitudes impensadas que nós todos cometemos, às vezes para o resto da vida, mesmo que agindo de boa fé, porém imprudentemente. Sua redenção ficar em aberto ao final do filme foi uma ótima decisão por parte de Field e Perrota (não li o livro, por tanto não sei se no romance é assim também). Justamente por não fazer muitas concessões é que Pecados Íntimos se mostra excelentemente maduro.
Para lidar com esses temas delicados, um elenco talentoso se fazia necessário. Kate Winslet dá mais uma mostra de talento e vocação para papéis sérios, reforçados em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e O Leitor. Patrick Wilson está ótimo no papel e se firma de vez como bom ator e deixa de estar renegado a filmes secundários. Jennifer Connely, não consegue repetir o grau de excelência atingido em Requiém Para Um Sonho e Uma Mente Brilhante, mas está muito bem em seu pequeno papel e mantém-se firme como uma das boas atrizes de sua geração, mesmo após ceder seus exuberantes olhos verdes a bombas de proporções estratosféricas como Hulk (2003) e O Dia Em Que A Terra Parou (2008). Mas é a interpretação de Jackie Earle-Haley a de inquestionável destaque no filme. É triste ver que mesmo após sua ótima presença aqui e principalmente como Rorschach em Watchmen, o feiosão da vez acabou sendo renegado a papéis coadjuvantes em filmes como A Ilha do Medo, Sombras da Noite e ao papel de Freddy Kruegger no terrível remake de A Hora do Pesadelo. Earle-Haley tem muito talento e possui um trabalho de voz marcante. Com certeza o ator merecia maior destaque.
Conduzido por uma ironica narração em off, Pecados Íntimos é mais um daqueles excelentes filmes que não recebem muita atenção por aqui. Não é um filme para se assistir no cinema, mas sim em casa, de preferência acompanhado de seu parceiro ou parceira, olho no olho. É um filme de questionamentos e reflexões, não de repostas. E apesar do título Little Children (criancinhas) condizer perfeitamente com o comportamento dos personagens, desta vez o título nacional ficou perfeito. Afinal, o que é e o que não é pecado em nossa intimidade?
O filme é excelente e o texto está a altura caro Cristian, mais uma vez obrigado por nos presentear com eles!
O interessante tbm é que o Field está num hiato muito grande, não sei se ele está se dedicando so aos teatros mas esse exemplar aqui e "Entre Quatro Paredes" são fenomenais...
Gosto bastante também. Direção fenomenal e grandes atuações de Kate Winslet e Jackie Earley Harley.
Valeu galera. 😁