‘’OBRIGADO POR TER SIDO UM CAVALHEIRO, BOB. É UMA ESPÉCIE EM EXTINÇÃO. ACREDITE.’’
O cinema é algo mágico mesmo. Quando bem realizado, ele pode transformar uma armadilha em uma arma, um lugar comum em uma saída inteligente e um estereótipo em uma desconstrução do mesmo. Porém, isso requer muita habilidade e cautela por parte de seus idealizadores, principalmente diretor(es) e roteirista(s). Sendo assim, é justo afirmar que Stephan Elliott realizou em Priscilla - A Rainha do Deserto (The Adventures of Priscilla - The Queen of the Desert, 1994) uma obra inteligente e sagaz, eficiente quase que em sua totalidade, usando de vários clichês e estereótipos como pano de fundo de uma história cheia de nuances dramáticos e de uma beleza singela despida de preconceitos e pré-conceitos. Uma pequena jóia da comédia esquecida nos agitados anos 90.
Valendo-se de três estereótipos mais do que bem definidos (o afetado irresponsável, o introspectivo e o sábio experiente e bem resolvido) para delinear seus protagonistas - dos mais excêntricos e incomuns que me lembro -, Elliott utiliza deste artefato (os travestis estereotipados) muito habilmente para trazer o filme para seu total comando e nossa completa apreciação. E nesta empreitada se evidencia o ponto mais forte de Priscilla - A Rainha do Deserto: o conflito de gerações. Ralph/Bernadette (Terence Stamp) é de uma geração anterior, a qual já passou por muita coisa, superando várias e ignorando outras tantas. Como ele mesmo chega a frisar em certa passagem: "Se hoje sei lutar, é por que já apanhei muito.". Sua classe, postura exemplar e segurança inabalável demonstram toda sua experiência. Não digo idade, mas experiência de vida mesmo. Bernadette viveu o auge da libertação sexual, viveu e conviveu com a rejeição e o espanto, e também com a indeferença. Fortaleceu-se. Virou referência para os demais. Adam/Felicia (Guy Pearce) representa a nova geração clamando para ser ouvida. Sem ter passado pelos dias mais escuros que as gerações passadas (Bernadaette) vivenciaram, Felicia vive em uma eterna festa, sem responsabilidade sobre seus atos nem reconhecer os reais perigos que o rondam, por mais eminentes que estes sejam. Adam/Felicia é desafiador, irritante, sarcástico e desrespeitador, como se quisesse impor sua existência ao mundo e não ser ignorado por ele. Entre essas duas extremidades encontra-se Anthony ‘’Tick’’/Mitzi (Hugo Weaving), retraído e compenetrado, parece viver em um mundo a parte. Tick está em constante dilema. Não se conhecendo por completo até pouco tempo e vivendo em constante conflito e tristeza, é Tick o propulsor de toda a história. Mesmo que Bernadette também tenha motivos para dar início à jornada do filme, é a partir de Tick que vamos nos familiarizando com a trama, seus personagens e seus dramas. A viagem de Priscilla pelo deserto australiano é mais do que uma fuga dos problemas. É, também, uma busca pela auto-satisfação e redenção. Uma correção de falhas passadas.
A confrontação com os fantasmas do passado é constante em Priscilla, onde três situações definem bem o background de cada protagonista. Ainda criança, Ralph deixava claras suas tendências homossexuais (a troca de presentes de natal com a irmã é muito engraçada), desestabilizando a base familiar (levando em conta a idade da personagem, devemos estar falando do início dos anos 70). Adam era vítima de abusos por parte do irmão de sua mãe, mas já mostrava desde pequeno sua personalidade caótica e desafiadora (mesmo tratando de um tema pesadíssimo e sendo uma das cenas subjetivamente mais pesadas do filme, a cena da banheira é hilária). Já Tick confronta-se com sua afinidade sexual. Casado e pai de um filho que mau conheceu, Anthony já trabalhava como drag queen (excelente montagem de Sue Blainey com os flashbacks) para somente depois se descobrir gay de fato. E a expectativa do filme se baseia totalmente nesse reencontro de Tick com ex-esposa e filho. E é com muita satisfação que acompanhamos este desdobramento sem que o roteiro (do próprio Elliott) ceda a redenção e à reconciliação – por assim dizer – de Anthony com a ex-esposa e filho. Tampouco cede totalmente ao romance entre Bernadette e Bob (Bill Hunter), embora dê todos os indícios para tal.
Que Pearce e Weaving são bons atores, já estamos carecas de saber. E aqui eles fazem um trabalho muito bom e seguro. Mas Terence Stamp está impagável!! Sem sombra de dúvidas é o destaque do filme. Completamente a vontade no papel, Stamp personifica toda a bagagem que sua personagem carrega e ainda se diverte – e nos diverte – com um papel que muito lhe exige, pois o risco do caricato e do ridículo se fazia presente o tempo inteiro.
A linha de produção de Priscilla fez um trabalho digno, principalmente a produção de Al Clark e Michael Hawlyn e a música de Guy Gross que aposta de vários sucessos que embalam as apresentações de drag queens mundo a fora, mas sem ceder as obviedades de ‘’Dancing Queen’’ e ‘’It’s Raining Men’’, mas sem escapar do clássico ‘’I Will Survive’’. A direção de arte de Colin Gibson e a fotografia colorida e alegre de Brian J. Breheny também merecem destaque durante a passagem pelo deserto, abusando do contraste entre as cores chamativas das vestes do trio (principalmente amarelo e rosa) com a imensidão de areia que serve como cenário..
Como Priscilla é um filme de comédia, boas risadas surgem em alguns momentos bastante curiosos, como os protagonistas fazendo uma apresentação para aborígenes no centro do deserto, os já citados flashbacks e a clássica cena do pompoarismo feito pela ‘’excêntrica’’ mulher de Bob, arremessando bolinhas de ping-pong na platéia calorosa em um bar. Além, é claro, das inúmeras frases sarcásticas e hilárias proferidas em sua maioria por Adam. A temática é um tanto séria e pesada, mas o filme diverte bastante.
Comédia inteligente e diferente que trata de temas pesados como pedofilia, preconceito (a pichação ‘’fora malditos aidéticos’’ na lateral do ônibus é impactante), homossexualismo, homofobia, intolerância e violência contra o diferente, Priscilla – A Rainha do Deserto estabelece-se como uma espécie de road movie do deserto colorido e ‘’radiante’’. Esquecido por uns, idolatrado por outros, o filme encontra-se bem acima da média do gênero, pois não procura nem concessões, nem dramaticidade onde não há. Seja pelo bom trabalho da equipe ou do elenco, ou mesmo pela diversão de alto nível, Priscilla é mais um bom filme que ficou para trás. Vale à pena resgatá-lo.
Ler essa crítica salvou meu domingo, muito legal!
Esse filme é muito bom o trio principal atual muito bem e a crítica está boa mesmo...