Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, nada mais é que um retrato, sincero e realista, da relação entre patrões e empregados, muitas vezes conflituosa, porém extremamente recorrente. A diretora escolheu muito bem Regina Casé para dar vida a Val, empregada doméstica que deixou Pernambuco para trabalhar numa casa da classe alta de São Paulo. A opção pela atriz foi muito acertada, uma vez que Casé conferiu a humilde trabalhadora sentimentos genuínos e doces. Além dela, Camila Márdila também interpreta com louvor sua personagem, a menina Jéssica, filha da protagonista. Que Horas Ela Volta? é um filme de poucas pessoas, contudo, repleto de sentimentos que fazem o coração palpitar mais forte dentro do peito.
Esse diferencial do longa é materializado logo nos minutos iniciais, quando somos introduzidos no casarão de Bárbara, patroa há anos de Val. Vemos quartos, cozinha, sala e jardim. Ambos os espaços amplos e com muita luminosidade. Nesse ponto, vislumbramos um belo trabalho da equipe de fotografia, preocupada com os mínimos detalhes, desde um quadro na parede até um vaso no jardim. Val, por sua vez, dorme num quartinho só para ela. Sua relação com os patrões é, até certo ponto, saudosa e amigável. A estrutura de confiança entre os envolvidos nessa relação trabalhista se enfraquece quando, de uma hora para outra, Jéssica chega do Nordeste a fim de prestar o vestibular na maior cidade do Brasil.
Ela sonha ser arquiteta, porém, Bárbara é uma das pessoas que a alerta quanto a dificuldade de se passar em tal faculdade. Entretanto, Jéssica vai consumando sua inquietude com a mãe, com a qual desabafa de forma expressiva. Esse choque de culturas é muito explícito no filme, que revela ao olhar de nós, espectadores, o que todos ignoram, o preconceito. A dúvida que os mais ricos tem de ver o sucesso do mais pobre, a indiferença quanto ao potencial do negro, a esnobe sensação de superioridade.
Enquanto que o filho de Bárbara curte a empregada e a tem como uma segunda mãe, a patroa age com desprezo e falsidade. Já o marido de Bárbara é curioso e vive interrogando Jéssica, como que numa tentativa de aproximação carinhosa. Esta diferença de olhares oriunda de um mesmo seio familiar é o que encanta na película, pois mostra que, apesar do estereótipo de família branca existir, nem todos pensam assim dentro de uma mesma família. Talvez a que mais relute quanto ao rompimento de estigmas seja a personagem de Bárbara. Sua personalidade relutante é reflexo de pessoas cegas ao mundo e a suas mazelas.
Anna Muylaert entrega, no final, um filme que se fecha num ciclo tão natural como o da vida, e que se permite criticar subjetivamente a polaridade entre classe alta e baixa de maneira metafórica e visual. A cena em que Val entra na piscina da patroa e ignora qualquer restrição é genial, além de outros momentos, como o que Jéssica passa no vestibular e Bárbara consola o filho (que não passara) alegando que a filha de Val não fazia outra coisa sequer estudar. Essa desculpa de burguês é pronunciada e difundida todos os dias, não sei exatamente onde, em qual domicílio, mas é e com recorrência. Muylaert ganhou pontos também pelo todo humorístico. A obra possui passagens levens e de piadas comuns, das quais o ser humano, o gente como a gente, ri todos os dias. Essa vertente cotidiana crível da obra é o maior trunfo da diretora.
Muylaert entrega um trabalho facilmente reconhecível na nossa rotina, ainda que caia no final e tenha falta de ritmo em alguns momentos. A mãe que pega no pé do filho por ele não agir de acordo com as boas maneiras, o filho rebelde que usa droga, a família digital que senta ao redor da mesa para comer e não sai do celular. Esses elementos tornam a tão orgânica obra em um ótimo filme. As muitas Vals que dão duro por esse Brasil facilmente chorarão com Que Horas Ela Volta? e, ao término de uma sessão do filme, verão que a vida delas dá mais do que uma remuneração no final do mês, dá um filme digno, mesmo, é de Hollywood..
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