"É tudo diferente isso aqui. É o preto no branco, branco no preto. É diferente, que nem tu"."
O filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, trata da vida de Val (Regina Casé), uma imigrante nordestina que mora em São Paulo há uma década e ganha a vida como empregada doméstica em uma casa de uma família da classe alta paulistana. Ela inclusive mora com os seus patrões, ainda que não necessariamente na mesma casa. São os membros dessa família: Bárbara, Carlos e Fabinho.
É interessante o modo como Muylaert apresenta o casal de patrões de Val. Bárbara é o “homem” da casa. Uma cena em que os três familiares estão jantando é particularmente curiosa pela postura deles na mesa. É Bárbara que senta na ponta, com seus ombros largos e um olhar seco para os outros. Em todas as suas aparições, ela parece estar olhando os outros de cima. O marido, à sua direita, tem os ombros caídos, e parece estar cabisbaixo. Calvo e de óculos, ele tem uma aparência frágil, em constraste com a figura imponente de sua mulher (essa frieza me lembrou bem o casal principal de “Beleza Americana”).
A relação que Val tem com o filho de seus patrões é uma das coisas mais chamativas do filme. É ela que abre o filme junto ao menino ainda criança. Em todo o filme, ela está mais próxima dele que a sua mãe, uma estilista de sucesso. Até o seu pai, alguém que, como se revelou depois, é uma figura deprimida por não ter conseguido seguir a sua carreira artística que tanto quisera, não consegue ser tão presente na vida do filho. Dá para notar pela intimidade que os amigos de garoto têm com Val que ela não é simplesmente uma empregada para Fabinho. Essa estrutura familiar dura dez anos, até que Jéssica, filha de Val, vai morar um tempo com a sua mãe e, consequentemente, com os seus patrões também. A partir daí, depois de uma década, as coisas começam a mudar nessa família
Admito que fiquei com um certo receio com a inserção de Jéssica na família logo na sua apresentação, quando ela diz que , graças ao seu professor, tinha algum senso crítico. Imaginei que ela iria ser aquele tipo clássico e já datado de rebelde contra os ricos. Mas o modo como ela interage com cada uma dos membros daquela casa, incluindo a sua mãe é bem mais que isso. Se, de fato, ela não se deu bem com Bárbara (destaque para a cena em que, inconsciente do ato, Bárbara serve o café da manhã para a filha de sua empregada), ela consegue se tornar amiga de Fabinho e também despertar (outra semelhança com o primeiro filme de Sam Mendes) a paixão do marido da patroa de sua mãe (realmente, não dá para chamar Carlos de patrão, às vezes, quando ela grita o seu nome na casa, parece até que ele também é um de seus empregados).
A parte técnica do filme é impecável. O modo como cada detalhe da grande casa é iluminado chama bastante a atenção. No tocante ao elenco, deve-se realmente dar o crédito à injustiçada (pelo público geral, de vido ao seu programa televisivo de gosto discutível) Regina Casé, que esbanjou naturalidade no papel da nordestina Val. Talvez o defeito principal do filme está em vilanizar demais Bárbara, no papel da típica mulher rica mesquinha.
Acho que a crítica social do filme mais forte está na relação entre ricos e pobres, não só nos seus conflitos, mas na sua convivência. Um fenômeno recente na sociedade brasileira é a inserção de pessoas de classes baixa em ambientes ditos para a elite, como as universidades (esse ambiente, em especial, ganha um certo enfoque nesse filme). E o conjunto de café, com xícaras e pires pretos e brancos misturados, que Val quer dar para Bárbara, simboliza bem essa hipocrisia da sociedade brasileira. Quando Bárbara recebe o kit, ela diz achar lindo, mas não aceita que se use na sua festa. É como alguém da classe A achar bonito a ideia de ascensão social dos pobres, mas não engolir bem a ideia da filha de sua empregada fazer um curso universitário extremamente concorrido e o seu não.
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