Renegados Até a Última Rajada é assombrado pelo american way of life da metrópole. Estes é veiculado principalmente pela programação paralela do rádio que embala a maior parte das cenas. As radionovelas, anúncios e canções tornam-se espectros de um ideal adocicado de materialismo e consumo: o fantasma da sociedade industrial e consumista assombra esse mundo rural que também é vendido como um lugar de pacificidade e harmonia. Mas a resposta de Altman ao comercial de Coca-Cola é uma realidade bruta e monótona, no qual as cores vibrantes da publicidade dão lugar a uma palheta cinzenta e nebulosa. O dinheiro não acrescenta qualquer cor ou textura a esse universo, independente do número de bancos assaltados pelos protagonistas, e não à toa Altman filma os assaltos num plano geral distante e praticamente estático, com pouquíssimos resquícios do jogo de polícia e ladrão dos faroestes clássicos. O próprio chalé Biedermeier do casal protagonista é dissolvido pelo claro-escuro das cenas noturnas, até praticamente desaparecer na tela.
Mas o american way of life ainda está ali, mesmo que sob outra configuração. Os espectros se corporificam nas garrafas de Coca-Cola jogadas pela casa ou pelas peças de propaganda espalhadas pela cidade e nos cenários mais inusitados como o banner da prisão. Detalhes como os papéis de parede e as cortinas em xadrez branco e vermelho presentificam um ideal cenográfico e um estilo de vida, mesmo que concomitantes aos ambientes bagunçados e carcomidos das casas e às lâmpadas elétricas quentes que quebram com qualquer pitoresco ou afetação. As personagens femininas exemplificam bem essa ambiguidade. A cabeleireira Lula torna-se uma caricatura da vénus platinada com seus cabelos super tingidos e o batom forte que suja o rosto dos rapazes, e a Keechie de Shelley Duvall segue de forma quase ingênua o ideal de beleza e consumo aprendido com as revistas, mesmo não correspondendo em nada ao padrão de beleza das baby dolls.
No entanto, Altman não está ali para expor o ridículo. No plano em que Duvall se contempla no espelho com metade do cabelo enrolado e a outra presa nos bobes vemos mais uma imagem de hesitação do que de paródia. Altman enxerga a dignidade trágica das personagens em suas respostas às promessas vazias de uma América em crise - promessas que elas e somente elas devem preencher com um significado. O papel de parede colorido e o penteado da última moda não precisam ser vistos como mera sujeição à propaganda. Eles são uma agência: estão lá por uma decisão de gosto ou estética. Se a cortina xadrez deixa o ambiente mais sofisticado ou minimamente mais deleitoso, por que não utilizá-la? As personagens não reproduzem a publicidade: elas mesmas a tensionam o tempo todo até criarem uma nova estética, esse híbrido estranho e ao mesmo tempo aconchegante entre o kitsch e o grosseiro. Altman explora até o potencial cômico dessa apropriação, quando Duvall solta argolas de fumaça na cama ao lado do companheiro enquanto escutam o programa adocicado de Romeu e Julieta. Há uma divergência cômica entre um e outro ainda que em essência tratem-se ambos de uma história de amor.
Não que essa construção dissipe o destino trágico das protagonistas. A ironia mordaz da coberta de retalhos transformada em mortalha sela bem que as relações de poder ainda são determinantes em quem serão os vencidos e os vencedores. Isso é dado desde o começo, quando Altman diminui as personagens nas paisagens nebulosas do interior, em uma cena de suposta promessa de liberdade. Mas lembremos igualmente da resistência. Se ainda somos mortos pelo capital ou a exploração, que sejamos embrulhados em nossas mantas e cores e não nos sacos plásticos do algoz.
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