Se apegar a mil coisas ou desistir de todas por uma só? O que conta mais, a nossa liberdade de escolha ou o que nos é imposto como certo desde anos? São os erros, por seus ensinamentos, mais importantes que os acertos, que só causam mais certeza? Como não deixar que uma única gota de água jamais seque?
É a responder, ou articular, tais questões em que Samsara, filme franco-ítalo-indiano se propõe a debater em mais de duas horas de duração.
Se abre uma porta, é de um retiro, lá está o jovem Tashi, que após três duradouros anos passou isolado e em meditação para só assim, voltar ao seu monastério e receber uma "coroação" de ninguém menos que o próprio Dalai Lama. E é com grande sensibilidade, que o diretor indiano Pan Nalin trata um jovem que parecia ter se despido de todas as dúvidas e que na verdade, só agora se encontra com elas. Daí surge a questão que parece óbvia, mas não é, refletir em isolamento por mais anos que seja, não é uma experiência extremamente fraca quando deparada com os viveres da vida real? Com os amores, desamores, tarefas e rotina?
O próprio jovem Tashi, em plena puberdade, decide que nem tudo, como o próprio Buda disse uma vez, deve ser seguido a risca se não houver sentido, se não houver conexão mental ou espiritual, concordância que seja. Tashi passa a ser reprimido pelos monges de seu monastério ao começar a ter ereções, ao pensar em mulheres, ou em uma companheira, acaba perdendo não só o rumo de sua espiritualidade, mas a própria atenção nos dias que chegam.
Filmado na grande maioria das vezes com luz natural (o sempre presente sol), o diretor de fotografia Rali Raltchev opta por sempre focar em primeiro plano alguma planície de areia, para ao fundo, geralmente em desfoque, a imensidão da mistura de deserto e de gelo que a paisagem fornece. Mesmo pela noite, a única fonte de luz é sempre advinda de janelas abertas, de tecidos que enfraquecem a luz da Lua ou de alguma chama.
Ladakh é a região onde Samsara foi gravado, e onde a trama passa-se (o mosteiro onde a parte religiosa foi gravada, situa-se em Tikse). Situado na Índia (ao Norte), a região possui uma altitude de 15.000 metros, conhecida como "pequeno Tibet", por sua religião budista, proximidade e semelhança geográfica, é um dos locais menos populosos e menos povoado de um país conhecido por sua massiva população. A região é de uma antiga disputa, e divida entre Índia (ao Sul), Paquistão (ao Oeste) e da China (parte oriental).
Samsara é poderoso como cinema, pois parece sempre lembrar que há algo fora do que conhecemos. Que mesmo nas montanhas mais áridas do planeta, casos como amor e morte, amizade e vingança podem acontecer. E que qualquer país, em qualquer situação política que esteja, também pode fazer uma obra de elevado nível espiritual.
Como dito no filme: "precisamos conquistar certas coisas para depois abdicarmos delas". Uma frase de grande interpretação budista, pois teria Buda abdicado do que tinha se nunca tivesse conquistado isso? Não que se necessite matar um ser humano para saber que isso é errado, o próprio Buda parecia evidenciar que suas palavras eram o seu ponto de vista, mas que às vezes, a vida só nos ensina vivendo. E é viver que o protagonista busca, ele passa de um solitário isolado para um nômade trabalhador em uma única decisão, e se torna um pai de família com um trabalho respeitado na região com uma decisão da pessoa que ama. Se ele vai se apegar a isso é o que ele tentará descobrir.
Samsara possuí várias cenas de sexo e elas nunca parecem explícitas ou vulgares, sendo de um erotismo fascinante, inclusive uma das cenas é de traição, onde todos os conceitos estabelecidos desabam de onde quer que estavam, mas não teria o sexo uma relação espiritual, além do carnal?
Ao notar a excitação do jovem, um monge mais experiente o manda para ter uma conversa mental com um homem velho, que lhe mostra várias imagens do que parece ser uma espécie de Kamasutra, é um dos primeiros conceitos sexuais apresentados ao jovem que em uma mistura de adoração e vergonha, observa atentamente as antigas gravuras.
Depois de ter seu coração partido pela dúvida, uma jovem decide recorrer a um astrólogo para decidir seu futuro, após tudo isso sofrer uma grande bagunça, ela opta pelo lado inverso, sendo ela capaz de decidir seu próprio destino, não o tempo ou as estrelas, mas somente ela e a certeza do que sente.
É ela, ao final do filme, como esposa, que diz a Tashi que o amor verdadeiro e intenso pode ser maior do que qualquer reclusão e o maior do que qualquer ascensão espiritual, de que a grande sabedoria também pode estar em um par amoroso, que essa pode ser a maior das ligações espirituais - também ligada ao corpo, corpo e alma, alma e corpo.
Também ligado ao ideal budista de que o homem nunca está satisfeito com aquilo que tem, já que Tashi sai do lugar de onde veio para voltar a ele, ao voltar percebe que algo mudou, redescobre um novo lugar para chamar de seu, e ao cometer um erro nesse lugar, percebe que dali deve sair para voltar de onde veio. Ao invés de enfrentar suas responsabilidades, parece fugir de todas elas, e fugir da dor não é a melhor maneira de aprender a vencê-la.
No Budismo tibetano, o Samsara é visto como a eterna repetição da vida e da morte, como uma roda, um ciclo a ser superado através da iluminação interior, que sendo adquirida, pode ser escapada dessa transmigração (filosofia de origem indiana de renascer em outros corpos) e se tornar um Lama, como Tashi.
Como o nirvana seria exatamente se livrar do ego e do fogo das paixões, podemos supor que: ou o personagem deveria viver outras vidas para chegar ao nirvana, ao superior; ou cada um pode decidir seu próprio destino e o único nirvana está dentro de cada um de nós.
Em um século onde países asiáticos como Índia e China aumentaram (ou mesmo adquiriram) suas potências nucleares, é pertinente debater o quão existe de bom e mal dentro de cada um de nós. Ao se deparar com a pergunta em uma pedra: "Como fazer com que uma gota de água nunca seque?" o jovem Lama não sabe a resposta, mesmo que ela tenha sido ensinada pela sua própria esposa ao seu próprio filho com um graveto na sua frente, é somente após tudo em que acreditava ser posto em prática novamente, que ele descobre que é se jogando nesse oceano de outras gotas, que jamais iremos desaparecer como poeira ao vento. O final, em aberto, nos abre a possibilidade de decidir por nós mesmos o que faríamos em tal posição, abrindo a possibilidade que o cinema tem, como arte, de nos fazer refletir sobre nós mesmos.
Excelente crítica!