É uma tarefa complicada escrever sobre “Scarface: A Vergonha de Uma Nação”, primeiro filme do gângster imortalizado anos mais tarde por Al Pacino na refilmagem encabeçada por Brian De Palma. Concebida pelo versátil Howard Hawks (aliado a Richard Rosson) e finalizada em 1932, essa primeira versão da história é o símbolo tanto de um genuíno anseio por um realismo crítico quanto da imposição de um nascente sistema de censura aplicado às grandes produções do cinema estadunidense. No caso, perante a definitiva consolidação do mundo belo e onírico de Hollywood, Howard Hawks aparentemente desejava fugir dessa idealização hollywoodiana, vislumbrando um lado mais obscuro dos EUA ou mesmo do “american way of life”, a partir da violência e cinismo de um gângster implacável e ambicioso, representante de uma máfia que reinava absoluta nas ruas e vielas da velha Chicago (na figura do protagonista Tony Camonte temos, afinal, uma sutil referência a Al Capone, um dos maiores expoentes dessa máfia).
Mas concomitante às ambições realistas de Hawks, despontava na “fábrica de sonhos” o Código Hayes, censura que asseguraria a manutenção da “moral e dos bons costumes” na grande tela, reprimindo todo e qualquer filme que vislumbrasse ou enfatizasse a nudez, o sexo, a violência e até o relacionamento inter-racial. Dessa maneira foi inevitável o choque entre essas incisivas normas de conduta e a nova empreitada de Hawks, permeada, no caso, de sequências com explícita e mesmo chocante violência (e isso sem mencionar as pontuais conotações sexuais da narrativa, sobretudo aquela relacionada a um possível desejo incestuoso do protagonista para com sua irmã caçula). Dessa forma, com as reprimendas e com as alterações impostas pela censura, “Scarface” tornou-se uma obra ligeiramente diferente da concepção original de Hawks. O realismo crítico permanece na denúncia dos serviços ocultos da máfia, mas desta vez sob um viés bastante moralista evidente já no subtítulo imposto pela censura: “A Vergonha de Uma Nação” - e mesmo essa moral reforçada é suficiente para influenciar todo o sentido da obra final.
Portanto, aquele que se detiver com esse importante título do cinema estadunidense certamente se encontrará num empasse: avaliar a obra considerando os objetivos originais de seu autor ou avaliar a obra como ela efetivamente se tornou a partir das modificações da censura? Particularmente, esse que vos escreve tentará equilibrar os dois polos, embora certamente tenderá a valorizar a obra final, haja vista o fato de a obra de arte se sobrepor tantas vezes ao seu próprio autor e contexto na medida em que se sustenta na sensibilidade ímpar de cada espectador (apesar de a valorização do autor e do contexto da obra também serem mais do que prudentes visto os gritantes anacronismos que podem evitar – o que não significa que devemos nos prender a esse autor e a esse contexto).
Isso posto, vamos ao filme. Interpretado com grande peso e irreverência por Paul Muni, Tony Camonte (ou “Scarface” por conta da cicatriz de seu rosto) é o braço direito de Johnny Lovo (Osgood Perkins), ambicioso gângster que deseja monopolizar o tráfico de bebidas alcoólicas na chamada Região Sul de Chicago, eliminando, por intermédio de Tony, os chefes das quadrilhas locais (como o Big Louis Costillo (Harry J. Vejar), assassinado no começo do filme) mas ainda se distanciando e respeitando as quadrilhas da Região Norte. Tony Camonte, entretanto, não demora a se revelar como homem mais ambicioso do que o próprio Johnny Lovo, encabeçando violentos ataques tanto aos “concorrentes” do Sul quanto aos do Norte. Tornando-se uma figura mais e mais poderosa, temível e influente, o ítalo-americano acaba por finalmente superar o antigo chefe, chegando até mesmo a conquistar a antiga companheira deste, a bela e irônica Poppy (Karen Morley). Mas concomitante às suas crescentes riquezas e posses, o “pitoresco” gângster ainda enfrenta uma relação conturbada com a irmã mais nova “Cesca” Camonte (Ann Dvorak), a qual é constantemente reprimida pelo irmão por conta do absurdo ciúmes deste em relação à vida social e amorosa da garota (o que implica numa inconsciente obsessão incestuosa entre os irmãos) – e tamanha tensão só tende a aumentar quando “Cesca” se interessa pelo “braço direito” de Tony, Guido Rinaldo (George Raft).
Iniciado com letreiros que anunciam uma contundente denúncia contra as gangues que “ameaçam a liberdade e a segurança” dos EUA, “Scarface” não deixa de assumir uma postura bastante moralista na medida em que parece se utilizar de sua denúncia para condenar suas próprias personagens. Em verdade, o filme já se torna um exemplar único do cinema hollywoodiano dos anos 30 ao subverter a noção clássica de “mocinhos” e “bandidos”, uma vez que inescrupulosos traficantes assumem o papel de protagonistas, ao passo que seus antagonistas ou “vilões” são as autoridades sensatas e justas da polícia de Chicago. Ou seja, o herói da narrativa é um gângster insolente que utiliza-se da estrela do xerife para riscar, com enorme irreverência, o fósforo que acenderá o seu cigarro.
Mas se “Scarface” poderia proporcionar uma empatia do espectador para com esse “mocinho” (como na futura refilmagem de De Palma), a mesma é evitada não apenas pela reprimenda dos letreiros iniciais, mas pela própria impessoalidade com que o filme se relaciona com os anti-heróis da narrativa. Prova disso é a completa ausência de trilha sonora ao longo da projeção, haja vista o fato de a música sempre conferir uma maior emotividade à narrativa cinematográfica – e essa emotividade é incabível num filme que condena qualquer compadecimento perante o criminoso que apresenta. E mesmo que tal silêncio tenha sido originalmente proposto em função de uma denúncia crua e realista da máfia (que enfatizasse, inclusive, o puro som das armas de fogo ou dos carros mortíferos dos traficantes), o fato é que a ausência da trilha reitera uma impessoalidade pertinente à condenação moral daquela situação e daquelas personagens.
O julgamento moral, aliás, igualmente se reflete na própria apresentação do protagonista Tony Camonte. Seduzido pelas maravilhas de consumo ofertadas pelo “american way of life”, o gângster não demora a se mostrar como uma figura “kitsch” ou, em termos mais familiares, como um “novo-rico”, que não hesita em gastar boa parte da recente fortuna em artigos de luxo e conforto que afirmem seu novo status social – e não deixa de ser cômico o momento em que o sujeito, mesmo vestido de camisa e calça sociais, utiliza um roupão de seda para impressionar as visitas de seu apartamento, o qual, inclusive, já possui uma decoração altamente luxuosa e meticulosa, digna de uma mansão mesmo se tratando de um pequeno aposento (e o kitsch chega ao máximo com a contratação de um secretário particular analfabeto que sequer sabe lidar com o telefone). Mas é no ridículo da “ostentação” de Tony Camonte que o longa acaba diminuindo o protagonista justamente para realçar o quanto o sujeito é uma figura medíocre ou condenável. Mais: é na figura de Tony Camonte (e de outras personagens) que “Scarface” chega a construir uma caricatura do ítalo-americano, aqui visto como um pobre estrangeiro bobamente seduzido pelo “american way of life” (e a caricatura chega a um de seus ápices em uma cena de discussão política na qual um ítalo-americano se mostra a favor da deportação dos mafiosos também ítalo-americanos, por estes serem “uma vergonha para seu povo”).
Mas a despeito da abordagem bastante impessoal e crítica dessa narrativa, o longa de Howard Hawks ainda apresenta uma interessante e mesmo bela abordagem visual dos mesmos fatos e personagens. Utilizando-se dos artifícios imagéticos da Hollywood clássica – ainda que sob o objetivo de um realismo crítico que denuncie uma faceta oculta dos EUA –, o filme apresenta diversos quadros e sequências altamente refinados, instigantes e até impactantes, seja pelo que explicitamente visualizam (como um Tony Camonte atirando pela primeira vez, com forte entusiasmo, uma poderosa arma de fogo), seja pelo que justamente não mostram (após um atentado contra um caminhão do tráfico, um pesado barril de cerveja rola até atingir com grande força a janela de uma residência, com a câmera registrando apenas os gritos da família aterrorizada).
E se Howard Hawks chega até a se divertir com a irreverência transgressora desse universo, como na passagem do secretário tentando atender o telefone em meio a um atentado em um café ou na apresentação de Poppy quando a moça parece ser emoldurada pelo portão do aposento em que se encontra (como uma obra plástica rapidamente ambicionada por Tony), o cineasta ainda apresenta uma certa sensibilidade ou sutileza nas sequências ou elementos visuais que envolvem direta ou indiretamente a irmã caçula “Cesca”, vide o belo quadro em que a moça observa um vendedor ambulante por detrás das grades de sua varanda, símbolos de seu aprisionamento, ou a moeda que a garota acaba dando a Rinaldo, o qual, ao jogar constantemente a moeda na palma da mão (inclusive quando na companhia de Tony), a converte em genuíno objeto de afeição (e reparem que uma trilha sonora indireta é quase sempre tocada nas cenas protagonizadas pela moça).
Por fim, Hawks ainda elabora uma interessante rima visual. No caso, o formato da cicatriz de Tony Camonte, uma espécie de X ou cruz, é sempre evocado de uma forma ou de outra em momentos cruciais da narrativa, nos quais o gângster põe em prática seus homicídios. Seja pela disposição de sombras ou pela iluminação, seja até mesmo por armações de madeira ou por inofensivos postes noturnos, o X sempre está presente quando Scarface está prestes a cometer outra violência insana e fatal, como se fosse, em sua projeção da cicatriz do impetuoso gângster, uma espécie de sinal ou marca do mesmo. Com isso, tal como as futuras laranjas de Francis Ford Coppola em seu “O Poderoso Chefão”, o X já deixa o espectador num estado de genuína ansiedade perante a pista de que nova violência em breve tomará conta da tela, e tal ferramenta torna-se verdadeiramente útil pelas criativas, intensas e econômicas sutilezas que cria em diversos momentos da projeção, como na cena em que percebemos o X na armação do vestido de festa de “Cesca” (o que já antecipa a repressão agressiva do irmão enciumado e possessivo) ou a passagem em que o próprio Tony, com sua cicatriz enfatizada pela câmera, encara um tenso Johnny Lovo (e se a projeção da cicatriz já ocasionou tantas violências, a presença do “verdadeiro X” já nos indica a situação mais do que desesperadora que o sujeito se encontra).
É nesse apuro visual que enfim chegamos a uma outra faceta da abordagem de Hawks para com seu protagonista. Embora ainda elabore uma caricatura daquele ítalo-americano mafioso, o cineasta não deixa de sutilmente humanizar Tony Camonte ou, no mínimo, de demonstrar sincera compreensão sobre as ambições do sujeito. Ao contemplar o outdoor “O Mundo É Seu”, Tony, além do “novo-rico” kitsch, também se revela como um homem no fundo apenas ávido por obter o pleno controle sobre sua realidade ou a plena posse das maravilhas de seu mundo, num ímpeto certamente compartilhado por vários dos inocentes cidadãos estadunidenses (estrangeiros ou não) igualmente interessados em ser o “homem americano” onipotente, tão valorizado pelo “american way of life”. Além disso, é na supracitada sensível abordagem da figura de “Cesca” (mesmo com a impetuosidade desta), que o filme aponta a genuína importância da garota para o gângster, com ela se tornando num provável símbolo da pouca pureza ou inocência que ainda restaram na vida particular de desejos e corrupções de Tony – uma pureza ou inocência que Tony fará de tudo para preservar em mais um anseio de plena posse sobre sua realidade ou sobre seu mundo.
É dessa forma que Hawks não deixa de reconhecer a tragédia pessoal de um homem obcecado pela ambição e pelo controle e no fim sabotado justamente por esses desejos, embora o viés moralista também se reflita nessa decadência particular de Tony Camonte na medida em que tal queda pode igualmente significar a condenação de um homem que ousou ambicionar mais do que devia – ou de um cidadão comum que ousou burlar as regras de um sistema sócio, político e econômico para alcançar os prazeres fúteis do luxo e do conforto (mesmo que estes sejam valorizados por esse mesmo sistema). Mas a despeito das ambiguidades da censura (ou mesmo em função dessas ambiguidades), “Scarface” possui uma força inegável, seja pelo caráter instigante e criativo de sua abordagem realista do mundo da máfia, seja pela gravidade e presença de suas personagens ou mesmo de suas puras imagens. No final, independente dos planos originais de Howard Hawks e das imposições da censura da época, Scarface, O Filme É Seu.
Você exagera, mas muito obrigado Cristian! 😁
Não tô brincando, não, Luís. Diz aí: você possui blog de cinema? Você escreve muito bem, cara. Meus comentários são mais pessoais e informais. Os seus são bastante criteriosos e lúcidos. Gosto muito deles. Nem curto animações e leio seus textos sobre elas...
Na verdade tenho um blog sim. Caso queira dar uma olhada (é bem simples, nada muito chique)...
http://cinema-mon-amour31.webnode.com/
Já já eu dou uma olhadinha (tô no trabalho.....)😉