“Eu digo a você hoje, meus amigos, que embora nós enfrentemos as dificuldades de hoje e amanhã. Eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.”
Selma – Uma Luta Pela Igualdade é um filme tão importante quanto o vencedor do Oscar do ano passado, 12 Anos de Escravidão. Ou, talvez, até mais. Se para o filme de McQueen poderia se olhar com um perigoso distanciamento histórico que criava uma ilusão de que todo aquele horror é coisa de livro de história, para a produção de Ava DuVernay, mesmo passados 50 anos desde o acontecimento verídico narrado por ela, não há desculpa. A luta de Martin Luther King Jr. (interpretado aqui pelo ótimo David Oyelowo) continua. Talvez não pelo direito de votar, esse conquistado na base do sangue e suor, mas pelo direito básico de simplesmente não ser olhado/tratado diferente por causa da cor da pele. Por que o racismo ainda tá aí, não importa quantas Vejas estampando Daniel Alves e o decreto do fim dele sejam vendidas. Ou um jovem desarmado morto por um policial hoje em dia – Michael Brown em Berkeley no ano passado, ou os inúmeros anônimos aqui do Brasil - possui alguma diferença daquele interpretado aqui por Keith Stanfield?
Claro que ser uma defesa sempre válida dos direitos humanos não isentaria a produção de DuVernay de críticas caso sua qualidade puramente cinematográfica deixasse a desejar, o que felizmente não acontece. O texto de Paul Webb (que lidou com o tema no fraquíssimo Lincoln, de Spielberg) ao abandonar a ideia de uma cinebiografia “completa” de King e focar-se em um ponto específico de sua trajetória, a marcha de 1965 – após ele ganhar o Prêmio Nobel da Paz e após o famoso discurso de onde o trecho que abre esse texto foi retirado - em Selma, no Sul dos Estados Unidos, famoso por sua intolerância racial, que levou ao direito dos negros votarem ser reconhecido, cria um filme conciso e interessante. Ainda que boa parte da ação se passe em conversas de cunho político, a coisa nunca desanda, transparecendo uma tensão que explode sempre que as sequencias de manifestações tomam a tela. Dito isso, a direção de DuVernay é fundamental por criar planos que ainda que simples são eficientes ao maximizar suas intenções, como as tomadas abertas que retratam a dimensão de parte da população que sai às ruas ou o uso do slow motion que torna a violência de oficiais - que deveriam proteger todos os cidadãos independente de sua cor – contra a parcela negra da população ainda mais assustadora.
Assustara e revoltante, por que é de pessoas que estamos falando. Pessoas como eu e você. E o roteiro de Webb não esquece disso ao transformar também King em uma pessoa realista, não um personagem heroico isento de defeitos. Se sua cruzada sem violência pelos direitos dos negros é algo digno de todos os aplausos do mundo, o filme não se acanha de mostrar que ele também possui suas fraquezas, seja através das crises conjugais com sua esposa, Coretta (a ótima Carmen Ejogo), seja na relação de respeito/antagonismo entre ele e Malcolm X (Nigel Thatch), que lutava pelos mesmos direitos defendendo a resposta violenta à violência, e que rende uma ótima cena durante a produção, quando a personalidade de ambos entra em choque sem nem ao menos se cruzarem na tela. E se Oyelowo tinha tudo para apostar no over e compor um personagem que dá show jogando para o espectador com emoções infladas, o ator se torna digno de figurar entre os melhores do ano justamente por fazer o oposto e apostar na sutiliza mesmo em momentos mais dramáticos, como os discursos de King ou a conversa com o pai de um jovem morto durante uma manifestação. E se King é um homem digno de respeito por sua trajetória, é interessante observar como ele ainda assim se torna uma figura engessada ao precisar lidar com pessoas mais “poderosas” que ele, como o governador do Alabama, o extremamente racista George Wallace (Tim Roth, que rouba cenas com seu sotaque carregado e expressão de puro cinismo) ou o presidente estadunidense, Lyndon Johnson (Tom Wilkinson), que apesar do cargo mais importante da política parece sempre um jovem inseguro de seus atos enquanto um homem que dispõe apenas de sua voz e seu corpo o desafia insistindo em suas convicções.
Voz, corpo e um sonho. Essas foram as armas de King que foi morto jovem em função desses, sem ver realizado por completo o seu sonho. Um sonho que esperemos um dia ser realizado.
Mais um belo texto, pedrao. Gostei da comparacao com 12 Anos..., embora ache Selma melhor.