Ouve-se um turbilhão de barulhos. A mulher arranhando a garganta pelo desespero, a música popular convocando seus ouvintes, os sons da selva e dos animais. O maior estardalhaço vem dos gritos de horror pelo subdesenvolvimento, pela dor que consome, pela fome na barriga. São estrondosos, sons de dentro pra fora, numa mistura de agonia, brasilidade e estranheza. Eles vêm do interior dos barracos locais, situados em meio a matas espessas, com habitantes tomados pelo calor, fome, lixo e mosquitos que rapidamente espantam o luxo e o bem-estar. “Ai, que fome! Que dor de barriga!”, grita Maria Gladys. É tanta barulheira que Rogério Sganzerla simplesmente não quis deixá-la que passasse em vão. Esse mundo de gritaria e sufoco tem que ser ouvido, visto e sentido por outras pessoas, não importando suas épocas ou nacionalidades. A situação do brasileiro pobre há de ser imortalizada pelas lentes da câmera.
Portanto, pode-se dizer que o começo de sua imortalidade se deu em 1970, representando não só uma das peças-chave do Cinema Marginal, grande movimento característico do cinema nacional pela retratação da realidade e adoção de um estilo menos formal e mais zombeteiro, mas também a consolidação de seu realizador no patamar dos grandes diretores de nossa terra. O olhar exótico de Sganzerla para a situação dos brasileiros se caracteriza principalmente pelo visual de um povo que nasce da sua rica cultura e densas matas, porém morre abusado pela pobreza, otimismo enganador e prepotência dos poderosos, e pela estética que beira ao anarquismo e exala uma bizarra beleza.
A grande liberdade desfrutada aqui é tão rara, quanto fascinante. Nunca se rendendo para o paradigma de uma história que deva ser obrigatoriamente contada, nem para o adotado como certo e formal na estética e na exploração de seus assuntos, a direção de Rogério Sganzerla é solta o bastante para dar origem a um estilo único e desvinculado de narrativas e aprofundamento de personagens, contra os efeitos artificiais e abusando da luz e cenários naturais, já que o intuito pulsante é o de delatar, denunciar, reproduzir a experiência de se viver em meio à podridão. Os rumos da trama mal possuem um começo e um fim, mas se prolongam enquanto o embrulho do estômago do brasileiro pobre continuar pedindo comida.
A impressão que se estabelece então é a de que Sganzerla, com toda sua revolta social e intelectual, resolveu adotar um caráter documental na captação da realidade crua e nua das favelas de sua época. As mulheres se suicidam do Pão de Açúcar, as crianças morrem de fome e os burgueses como o Aranha se esbanjam de prazer pelos seus bens adquiridos através do desvio de verbas e desigualdade social, todas as classes sociais filmadas com um olhar neurótico. O presente ganha vida e justifica as escolhas de Rogério, tornando o exato momento a literal fonte de vida de sua obra violadora. Tão violadora que até ousa a desafiar o espectador, num jogo entre realidade, documentação e ficção ao colocar em frente a um espelho a própria equipe de filmagem. Ultrapassa a metalinguagem, a distância entre obra e espectador, o que se conhecia como representação e linguagem fílmica. Tudo se mistura, fica explícito e a realidade mostrada em tela se confunde com a realidade dos nossos olhos.
Questionamentos é o que não faltam. O que é o Brasil? O que é o brasileiro? A mulher afunda na água, assim como sua nação afoga a própria vida e cultura para o homem do twelve o’clock. Sempre ele. Movido pelo dinheiro, pelo “what’s your name?”, pela desgraça dos habitantes de barraco, pela concentração e má distribuição de cruzeiros. A terra é de poucos, a renda é de alguns. No entanto, os nativos dessa terra tão amada teimam em continuar a lutar. Seria então o brasileiro, antes de tudo, um forte. Uma população em desespero, erguendo os braços numa fé cega de que alguém, em algum lugar, ouça o estardalhaço de sofrimento causado pela corrupção, desvio de verbas, alienação, lágrimas engolidas. Uma massa em busca de identidade, procurando o que a define, ainda insistindo em manter seu orgulho e cordas vocais em meio a tanta algazarra.
É tanta bagunça e misturas em harmonia, que é fácil de encontrar a singela brasilidade presente. No meio dos barracos, Luis Gonzaga e sua sanfona apaixonada hipnotizam o povo a cantar junto com ele e espantar os males que se fazem presentes, e que males. Jorge Loredo, famoso por seu personagem Zé Bonitinho, ganha destaque no papel de burguês esquisito e tosco, tão satírico quando deveria ser. E o que falar de Helena Ignez, um dos ícones femininos do cinema nacional? Sua presença já vale o filme todo. A obra possui uma personalidade tão exagerada, sincera, num misto de cultura popular com fortes críticas sociais, que a produção artística ganha uma total face nacional, um êxtase e ao mesmo tempo um incômodo para qualquer brasileiro que entrar na dança proposta, rico ou pobre, branco ou negro. Aqui, vale tudo mesmo. Contrariando Tim Maia, pode até dançar homem com homem e mulher com mulher. Podem entrar na dança também os travestis escandalosos, as mulheres que enfiam o dedo na goela para o próximo vômito, o senhor de classe alta que ri da vida e o espectador, fascinado com aquela roleta-russa de desgraça, prazeres e raízes da terra amada, florão da América.
Como qualquer habitante daquelas favelas, os personagens também vivem perdidos, sem rumo, afogados pela podridão, miséria e reciclagem. Onde e no que se agarrar quando tudo ao redor se despedaça? “Planetazinho vagabundo! Sistema Solar é um lixo!”. No fundo do poço, nem figuras sagradas ajudam mais. Procurar o demônio vermelho não parece tão inviável, já que o grito e a injustiça parecem ter virado lei, e a fome um dever para que outros possam comer. Se masturbar com uma garrafa também não se parece tão absurdo, não mais. É hora de procurar outras vertentes, outras verdades, de se descobrir como ser humano e brasileiro, de colocar o pé na cruz e buscar aquilo que realmente é. Quebram-se as regras impostas, de ética e estrutura fílmica, para que tudo se converta na experiência de se viver onde ninguém jamais desejou, e romper com o definitivo, já que nem sempre é favorável.
A estradinha de terra serve de palco para os perdidos na selva seguirem a sanfona e caminhar em busca de uma brasilidade fugitiva, ou apagada. Enquanto seus personagens trilham para um destino não esperançoso, Sganzerla imortaliza seu nome por toda a transgressão que deu origem em um cinema diferente, gritante, escandaloso, em plenos tempos de ditadura. Seu nome é um dos maiores quando se fala em filmes marginais, anti-pragmáticos, chocantes, vivos, oportunos. “Sem essa, Aranha” explicita seu domínio por uma diferente linguagem cinematográfica e sua voz estridente para certas causas, fazendo nascer da revolta e da podridão uma nova jóia. Já se passaram anos que a realidade de seu tempo foi filmada e imortalizada, mas para alguns brasileiros desfavorecidos, a situação continua exatamente a mesma. Degradação, morte e reciclagem. Aranha bem peluda essa.
PQP Que texto! Completamente apaixonado. Deu até um arrepio na espinha. Apesar de preferir O Bandido da Luz Vermelha, Sem Essa, Aranha também é um filmaço. Sganzerla é gigante.