Varsóvia, 1939. A próspera e vivaz capital polonesa depara-se, perplexa e amedrontada, com Adolf Hitler, o terrível ditador que agora caminha solitário e indiferente, ainda que sob o peso de sua autoridade, pelas ruas da cidade, observando a vitrina do delicatéssen do Sr. Maslowski ao mesmo tempo em que deixa a excitada multidão a sua volta de cabelos em pé. Em seguida, voltamos um pouco no tempo e descobrimos que esse Adolf Hitler é, na realidade, um ator fantasiado oriundo de uma companhia teatral que ensaiava um drama envolvendo as forças militares do nazismo. O ator, no caso, decide provar a força de sua composição ao enganar a própria multidão das ruas com o seu disfarce – e ele de fato conseguiu (pelo menos até uma garota revelar a sua farsa). Mas já por essa cômica introdução, Ernst Lubitsch nos entrega uma síntese do que oferecerá em sua grande empreitada: “Ser ou Não Ser”, o hilário drama (ou a trágica comédia) que, nas artimanhas sutis de sua câmera e na engenhosidade admirável de seu roteiro, celebra o profundo (e imprevisível) poder da arte sobre a realidade histórica de seus artistas e, principalmente, de seus contempladores.
Como já mencionado, o filme acompanha as desventuras de um grupo de teatro polonês, cujas maiores estrelas são o casal Joseph (Jack Benny) e Maria Tura (Carole Lombard) – ambos ávidos pelo holofote do palco, bem como pelo reconhecimento da plateia. Após a invasão das tropas nazistas na Polônia (estopim da Segunda Guerra Mundial), o grupo, unido ao militar Stanislav Sobinski (Robert Stack), assume a missão de despistar o Professor Siletsky (Stanley Ridges), espião nazi-polonês prestes a relatar a localização de diversos membros da resistência polonesa à polícia secreta nazista – e para tanto, a companhia de teatro, com seus vários disfarces e ardis, tentará convencer o Professor de que eles são a Gestapo, e nessa nobre empreitada Joseph, Maria e os outros encarnarão os papéis mais importantes de suas vidas. No entanto, mesmo essa interessante sinopse não prevê as intricadas articulações, as empolgantes reviravoltas e as belas rimas narrativas do roteiro de Edwin Justus Mayer (fruto do argumento original de Melchior Lengyel). Os elogios não são exagerados: a narrativa aqui celebrada é de grande inteligência, leveza e sedução, seja pelo planejamento cuidadoso dos acontecimentos da história (e da sucessão quase espontânea de eventos), seja pelo próprio carisma despertado pelas personagens (inclusive, algumas das antagonistas).
Todavia, o principal triunfo desse engenhoso script é o jogo constante e muitas vezes tênue entre a veracidade do fato e a farsa da ficção, com esta última inevitavelmente superando a primeira. Os atores, no caso, são homens e mulheres vulneráveis. Confinados, a princípio, nos limites do tablado, sua farsa é realizada em função de um público móvel, que pode facilmente desprezá-los e abandoná-los quando essa farsa não o satisfaz. Durante a invasão nazista à Polônia, a câmera, imobilizada no tablado, contempla a desesperada plateia fugindo do teatro: o público possui a liberdade de se retirar do teatro (mesmo em polvorosa); o ator já não possui essa mobilidade dada sua prisão no microcosmo do palco (e de fato, em oposição à multidão que se dispersa, a companhia de teatro permanece escondida no local em um ponto seguro do subsolo do prédio). No entanto, mesmo essa primeira dependência ao público (e constante vulnerabilidade à violência nazista) não impede a ilusão fulminante e mesmo penetrante da farsa. A despeito de sua suposta liberdade de locomoção, o público é capturado pela performance do ator. Em sua ânsia, quase voyeurista, de contemplar a estrela e acompanhar a narrativa, o espectador torna-se o prisioneiro do ator, chegando a ser manipulado por este tanto a partir das emoções despertadas pela farsa quanto a partir das atitudes estimuladas pela farsa.
Tamanha captura é vivenciada em vários planos da narrativa, seja em relação ao militar que se apaixona pela estrela de teatro, a ponto de acompanhar todos os passos de sua vida pública (e a ponto de desejá-la apenas para si), seja em relação aos próprios nazistas enganados pela companhia de teatro. Os atores, por fim, não só possuem noção desse poder como se deliciam largamente com ele, a ponto de desejá-lo quase fervorosamente como é o caso de quase todos os integrantes da companhia, sobretudo o casal Tura, ávidos pelo devido estrelato nos palcos. No entanto, é interessante como essa dramaturgia acaba se virando contra os próprios atores; não apenas pelo fato de a farsa quase virar uma questão de visceral sobrevivência (o improviso não raro torna-se uma saída urgente e vital), mas também pelos atores serem igualmente confundidos pelos ardis dessa farsa. É principalmente nesse ponto, inclusive, que o filme faz jus ao título “Ser ou Não Ser”: o dilema de Hamlet entre ser o príncipe em busca da vingança ou ser a farsa do príncipe enlouquecido atualiza-se no dilema desses atores que são súbita e facilmente convertidos em espectadores, atônitos pelos desdobramentos da farsa e quase tragados pela mesma (e destacam-se as passagens em que os atores quase perdem o controle sobre sua situação). Ou seja, ser o papel ou não ser o papel, ser o homem ou não ser o homem. É esse dilema que permeia toda a narrativa e é a partir dele que a dramaturgia, antes confinada no palco, liberta-se do tablado e quase ganha vida própria (tanto nos episódios mais dramáticos da história quanto em sutis desdobramentos cômicos).
Mas e o filme? Onde Ernst Lubitsch entra nisso? Ora, é pela profunda imersão na intricada narrativa que o filme “Ser ou Não Ser” leva o dilema de sua trama ao âmbito da experiência cinematográfica. Assim como o ator, Lubitsch manipula claramente o espectador para a plena captura de seu afeto e consideração. Um bom exemplo disso é a primeira cena iniciada por profundos closes nos letreiros de lojas tradicionais do comércio pacato de Varsóvia. Esses primeiros closes, no caso, serão contrapostos mais a frente pelos closes que vislumbram esses mesmos letreiros agora destruídos após a invasão nazista. Ou seja, Lubitsch concentra nossa atenção e afeto para essas primeiras imagens pois sabe o quanto nosso emocional será abalado pela posterior desconstrução delas, num evidente jogo de manipulação de seu espectador – jogo esse, aliás, igualmente aplicado nos enquadramentos da câmera que estrategicamente dirigem nossa atenção à encenação dos atores (seja os planos americanos que contemplam a persona do ator, seja os primeiros planos que celebram o discurso falso da dupla personagem), e nisso se inclui até a iluminação quase etérea concedida à estrela Carole Lombard (no filme, também motivo dos afetos e atenções dos olhares masculinos).
Ainda assim, é interessante como Lubitsch, além da ilusão de sua “janela para o mundo”, faz questão de nos lembrar, mesmo que pontualmente, nossa posição de espectadores. Dirigindo nossa atenção a um dado elemento da cena ou ao conjunto de um rico cenário, o cineasta brinca com o nosso olhar vislumbrando inesperadamente outro elemento até então não percebido pela câmera ou por nossa visão voyeurista. É o caso da passagem em que Sobinski se camufla numa floresta nevada em meio à perseguição dos nazistas, com o rapaz saindo de seu esconderijo para a surpresa do espectador que antes o procurava sem sucesso em meio a tanta neve e vegetação. E se Lubitsch provoca essa nossa atenção à narrativa, conferindo breves closes a determinados objetos de cena convertidos em pistas para a próxima e importante ação (ou até interrompendo determinada e crucial ação pelo corte da montagem), o cineasta chega, durante o diálogo entre duas personagens, a sutilmente distanciar a câmera das mesmas, negando uma “posição subjetiva” que se aproxime das personagens e ressaltando a presença de uma terceira pessoa na cena: justamente a câmera ou o espectador que está “espiando” aquela situação. Ou seja, é nessa, e nas outras situações, que Lubitsch nos lembra que não estamos inseridos nesse mundo da ficção. Somos espectadores, estamos de fora do “tablado”, apenas observando-o mesmo que de forma quase obsessiva e fissurada.
Dessa forma, também incorporamos o dilema do “Ser ou Não Ser”. Mergulhamos na narrativa a ponto de fazermos parte daquele mundo ou somos, na realidade, os voyeurs dessa ficção? Estamos ou não estamos com a personagem, pertencemos ou não pertencemos à narrativa? E finalmente: dada a manipulação de nossos sentidos e afetos, quantas reações mais o longa-metragem poderia estimular? Será que estamos tão distantes dos nazistas trapaceados pela farsa dos atores? Lubitsch, ao lado de tantos outros mestres (como o grande Hitchcock), vislumbraria esse poder quase assustador da obra de arte, em especial de seu atraente e penetrante voyeurismo. Mas a despeito do risco potencialmente mortal desse mergulho na obra de arte, no fundo sabemos qual será a nossa resposta ao “ser ou não ser”.
Parabéns Luís, mais um texto fantástico pra coleção, seus textos estão do mesmo nível da escrita dos editores!
Obrigado Lucas! 😁