Sicario revela-se um filme de quebra de expectativas. De cenas bem arquitetadas a um enredo simples mas de certa forma complexo, e cheio de elementos aptos a gerar cenas de alto impacto, temos nossas convicções daqueles acontecimentos sendo substituídas por um andar de acontecimentos cada vez mais estranhos, ambíguos e pessoais.
Inicialmente, apresenta-se narrativamente simples, sobretudo devido à utilização de clichês do gênero (como a policial que se vê cercada por homens e por uma situação a qual não esperava). Depois, aparentando ser uma mera obra com cenas de tensão construídas com um esmero o qual não estamos acostumados a presenciar no atual cinema, como a utilização de todo os aparatos cinematográficos que impactam os sentidos do espectador, seja com a minimalista trilha sonora, que mais parece um som ambiente alterado com graves muito fortes para exalar todo o tom de sufocamento, urgência e segredo da operação da qual participa Kate Macer, interpretada por Emily Blunt, seja com a fotografia eficiente em optar por planos muito abertos e alguns nada usuais, tal como um avião fazendo sombra num solo meio acinzentado, algo que parece dar pistas do fim do filme.
Ocorre que em meio a todos os artifícios excelentemente utilizados por Denis Villeneuve para mostrar toda a dimensão da situação, somos apresentados a uma história cada vez mais esquisita, sendo notável que logo nas primeiras cenas de determinado personagem chave do longa, o sentimento de desconfiança já é estabelecido - sutilmente, talvez até subliminarmente, mas é. Posteriormente, esse personagem age exatamente como agiria em qualquer outro filme, mas mesmo assim a impressão de que o comportamento mostrado não é "correto" é bastante evidenciado, o que sem dúvidas é mérito tanto da direção quanto do ator.
O grande acerto aqui talvez seja em não se polarizar numa proposta de reflexão entre o que é certo e errado, o limite entre esses dois conceitos, nem em querer discutir sob uma forma de crítica social as atitudes da polícia de um país em outro país.
O que realmente está em jogo em Sicario são as intenções pessoais do ser humano, e não é à toa que a operação que parecia estar agindo sob uma justificativa pautada no interesse da sociedade, ou melhor, dos que estão no poder econômico e político, revela-se uma grande farsa para simplesmente perpetrar uma vingança de cunho pessoal. Aqui está a quebra de expectativas. Pode até ser questionado que o crime que ocasionou a busca pelo "vilão" é de interesse de toda uma coletividade, sob o argumento de que o homicídio atinge não só os interesses privados. De fato. Mas aí que reside o ponto nevrálgico da discussão: em tempos de medo e falência das instituições, a confiança nestas cessou há muito, restando apenas a vingança privada como meio de reparação de danos. A questão é que tal vingança nunca resolveu nada, em nenhum momento histórico, e não é outra visão que resta ao sermos tomados pela incerteza pela qual é regida todo o filme. A incerteza do que o outro é capaz de fazer, a incerteza de a qualquer momento ser atacado, a incerteza de se cometer injustiças, tal como de matar civis inocentes. A imagem do avião refletido pelo solo cinzento pode ser tomada como uma metáfora: a representação de um poderio, assim como as armas e carros utilizados durante a operação, mas também de homens cada vez mais pessimistas e que se dão conta de que aquela guerra travada em nada resolve a situação, sendo os mesmos pequenos e meros objetos refletidos pela hipocrisia e ineficiência de seus governos, tal como o avião, pequeno, quase imperceptível, mergulhado por uma grande paisagem acinzentada.
Revelando-se como uma quebra de expectativas, acabamos descobrindo o verdadeiro protagonista do filme, alguém que vinha sendo construído desde sua primeira cena para mostrar seu grande dilema moral de uma forma que não o diferencia em nada de quem se vingou. E é aí que está o trunfo de Villeneuve: construir o personagem sempre com um tom ambíguo, mas sempre deixando prevalecer a desconfiança de que realmente não é alguém em quem se possa confiar, nem mesmo quando salva a "protagonista" da morte.
Talvez nossa confiança na justiça - não a com a letra maiúscula, mas a de conceito universal, seja lá o que signifique - esteja cada vez mais escassa. E mesmo aqueles que nela acreditam, tal como a personagem de Emily Blunt, acabam tendo que ceder a um pessimismo (evocado por aquele cinza do solo), e viver isolado dos lobos. A tomada do filho aguardando o pai aparecer na cama, no mesmo enquadramento de todas as vezes que aparece, representa o início de um novo ciclo, mas em muito semelhante ao passado, a ser marcado, talvez (e frise-se bem essa incerteza, sobretudo pelos tiros ouvidos ao longe na cena final), pela convicção e força de alguém que acredita na justiça que ainda pode ser feita.
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