“Desculpe ter sempre essa mesma cara sem graça"
Reflexos e fotografias são constantes em Time – O Amor Contra a Passagem do Tempo, filme sul-coreano dirigido por Ki-duk Kim. Cada um deles representa uma visão sobre si mesmo em tempos distintos: o reflexo mostra o presente, aquilo que se é; a fotografia, o passado, aquilo que se foi um dia e jamais será novamente. Numa narrativa onde a preocupação com a aparência move os personagens e a passagem de tempo age como uma sentença de morte executada aos poucos, cada plano em que um desses elementos surge acaba sugerindo um mundo sobre a narrativa de Kim. Time, aliás, é recheado de planos simbólicos que muitas vezes dizem mais que os diálogos de seus personagens – o que não surpreende já que Kim é um diretor de apurado senso estético.
Seh-hee (Ji-Yeon Park) e Ji-woo (Jung-woo Ha) são um casal de namorados que estão juntos há dois anos. O amor deles é recíproco, mas as brigas são constantes, pois a garota constantemente sofre ataques de ciúmes ao ver o rapaz olhar para outras mulheres, ainda que ele lhe garanto que são apenas olhadas inocentes. Para Seh-hee cada mulher representa a lembrança de que por mais bonita que seja ela será sempre a mesma e um dia pode simplesmente cansar o parceiro. É sua insegurança que a leva então a tomar uma radical decisão: passar por uma cirurgia plástica afim de transformar completamente seu rosto, fazendo assim seu namorado se apaixonar novamente por ela. Seh-hee desaparece sem deixar rastros e retorna após o período de recuperação do procedimento – seis meses -, agora sob a identidade de See-hee (Hyeon-a Seong), e logo inicia uma nova relação com Ji-woo, que ainda sofre por ter sido abandonado pela ex-namorada, com quem não imagina estar se relacionando novamente. As consequências logo se revelam trágicas para ambos.
Os protagonistas se amam. Mas de onde vem esse amor? É o interior que conta ou estamos mesmo presos ao exterior? Seh/See-hee e Ji-woo se relacionam novamente após a cirurgia da garota, mas é inegável que para o rapaz as coisas não são mais as mesmas e o que antes era aceitável nela, se torna insuportável, como as crises de ciúmes em público – o que acaba tornando tudo ainda mais difícil para Seh/See-hee, que considera estar dando continuidade ao antigo namoro, ignorando que para o parceiro aquela é uma relação nova. O tempo muda apenas a aparência física de uma pessoa ou seu interior, sua alma também é moldada com a passagem dos dias, anos? Se para Gaspar Noé “o tempo destrói tudo”, como o final (ou início, vai do ponto de vista) de Irreversível nos informa, para o roteiro de Ki-duk Kim, “o tempo muda tudo”. Por completo. Após os seis meses da cirurgia de Seh/See-hee, ela e Ji-woo não são mais os mesmos, daí as fotografias e os reflexos que nos lembram que tudo passa. Daí os encontros em uma praça que traz estátuas com formas humanas se relacionando: os personagens que se sentir parte daquilo, se sentir imutáveis, imunes ao tempo que tudo muda – e parte o coração ver Seh/See-hee se deitar ao lado de uma das estátuas, finalmente se agarrando a uma figura que ela sabe que será constante.
Mas nem sempre adianta lutar contra a passagem do tempo, às vezes a solução parece ser abraçar as mudanças que dele vem, não mais bater de frente com elas – os chutes desferidos contra uma mesma árvore por Seh/See-hee e Ji-woo em momentos distintos é isso, uma afronta ao tempo que transforma sementes em árvores imponentes. Então quando descobre ser Seh-hee e See-hee a mesma pessoa, Ji-woo decide ele também se tornar outro e passa por uma cirurgia plástica facial – ele não percebe que a simples revelação sobre sua namorada já havia lhe tornado uma nova pessoa, sem precisar de procedimento médico algum -, desorientando Seh/See-hee que vaga em busca do amado por uma cidade onde todos podem sê-lo. E onde ninguém é. E em um país onde a grande maioria recorre às plásticas - na época do filme a Coréia do Sul era recordista em indíces de cirurgias plásticas, tornando a obra também um manifesto sobre o exagero contemporâneo pela busca da perfeição estética - a dificuldade de buscar um rosto logo obriga See-hee a buscar mãos, levando à cenas de beleza singular onde os encontros se desenvolvem não em trocas de olhares, mas em tentativas desesperadas de se sentir acolhida nas mãos de outra pessoa. (E aqui vale apontar que Ji-Yeon Park, Jung-woo Ha e Hyeon-a Seong – principalmente essa última – estão ótimos como seus respectivos personagens, sempre prontos para explorar a fragilidade de figuras que, mesmo em seus momentos mais fortes, parecem prontas para se quebrar em pedaços diante de nossos olhos).
Aí um dia o tempo passa e leva junto a relação que existia entre duas pessoas e só resta mais uma vez tornar-se outra pessoa e assim desaparecer imperceptível na multidão. E o passado? Pode ser simplesmente rasgado como uma fotografia? Talvez não, mas se o tempo muda, pode apagar, certo? E até lá, caminha-se, ao som da melancólica trilha sonora de Hyung-woo Noh, sobre pedaços de uma outra existência, que de tão remota lembra partes de um todo, partes de uma fotografia. Caminha-se com a espera de não olhar para os pés e ver na imagem caída no chão as lembranças do que se busca esquecer. Caminhada essa mais uma vez representada em uma tocante cena simbólica de Time.
Ótimo texto. Deu pra sentir que houve pesquisa antes da escrita e a observação de detalhes do filme transformada em palavras resultou em uma análise muito bem feita.
Mas que tal começar a escrever textos sem spoilers?
Obrigado pelo elogio, Patrick :D
Sobre escrever sem spoilers, acho realmente complicado de fazer. No caso de Time, por exemplo, só se consegue abordar a temática do filme, simbolismos, etc. com revelação de cenas chave, senão ficaria algo vazio.
Então, acabo nunca escrevendo textos sem spoiler e mesmo quando acho que não tem nenhum, coloco o aviso por que algo que pra mim é “insignificante” pode ser considerado como um spoiler terrível por outra pessoa.
Em outras palavras, diria que escrevo como se estivesse conversando com um amigo depois de ambos termos assistido o filme em questão hahaha