BEBENDO FONTES TÃO DISTINTAS, PRIMEIRO FILME DE GERBASE TEM MUITO MAIS A DIZER DO QUE APARENTA
Com influência direta de Beleza Americana e no cinema marginal nacional dos anos e 70, 80 Tolerância (2000) é um ótimo thriller que se mostra bem mais complexo do que seus primeiros instantes aparentam. Apesar do visual datado (principalmente ao repararmos nos computadores, sistemas, programas, filmadoras), o filme de estréia de Carlos Gerbase (O Sal da Prata), se fortalece no seu desenrolar graças a força de seus argumentos e da complexidade de seus personagens.
Rodada e situada em Porto Alegre, Cuz Alta e Erechim (cidades tradicionais do meu querido RS), a trama gira em torno do casal Márcia (Maitê Proença) e Júlio (Roberto Bomtempo) e de seus conflitos de moral e ética à medida que adotam a política de sinceridade mútua e total entre eles. Ao que Márcia confessa ter cometido adultério, Júlio é tomado por um sentimento de vingança ávido, sendo o objeto e o alvo de sua cobiça Ana Maria (Maria Ribeiro), melhor amiga de sua filha Guida (Ana Maria Mainieri), prestes a completar 18 anos.
Iniciando como uma simples e até batida estória de adultério e vingança, Tolerância intensifica-se de maneira mais do que positiva quando começa a destrinchar melhor a índole de seus personagens e notamos que nenhum deles é unilateral, sendo vítma e algoz ao mesmo tempo. É quase impossível, dentro de minhas limitações, dissertar sobre Toletância e seus personagens sem comentar pontos cruciais do enredo.
Advogada criminal bem-sucedida, Márcia se mostra absurdamente fria em seu ambiente de trabalho e indiferente a condição do acusado que defende (que lhe confessou o assassinato). Márcia não hesita em usar dos mais baixos subterfúgios para conseguir o que quer. Seja manipulando o juri, fazendo-se valer do histórico de injustiças deste país, seja seduzindo seu cliente para que minta sob juramento. E sua frieza se explicita na maneira indiferente com que ela conta a seu marido como havia manipulado o tribunal. Mais impressionante ainda é a naturalidade com que ela revela à Júlio ter transado com seu cliente, poucos minutos após terem feito sexo em um local paradisíaco. Júlio, por sua vez, trabalha como editor de fotografia para uma revista masculina. No intervalo entre um fotoshop e outro, aventura-se nas salas de bate-papo erótico na internet. Sentindo-se traído por sua esposa, Júlio começa a despertar forte desejo sexual pela melhor amiga de seu filha, Ana Maria, que é a personificação da ninfeta dos desejos e fantasias de todo o homem. Linda, sensual e atrevida, a miça deixa claras suas intenções desde o primeiro olhar.
Este jogo "um trepa com o outro" dura até a metade final do terceiro ato e põe em xeque muitos ideais convencionais e desconstrói o conceito de família tradicionalmente aborados e adotados. Em uma certa passagem, logo de início, Júlio fuma um baseado com Guida e Ana Maria e, ao que sua filha diz saber que seus pais fumam maconha escondidos dela, tenta "ter uma conversa séria" com sua filha sobre Drogas. O momento, embora seja suavizado pelo foco na tensão sexual entre Júlio e Ana Maria, é a síntese do contexto dos personagens: faça o que eu digo, não faça o que eu faço. Em outro momento, Márcia briga com o marido por tentar fazer sexo com ele e este mostrar-se distraído e revelar estar pensando em outra. O fato de ele ter transado ou não com essa outra mulher, pouco importa para ela (que praticamente obriga o marido a ir atrás da tal garota e consumar seu desejo). O que lhe fere é o fato de Júlio deitar-se na cama com ela pensando em outra.
Todo este conflito sexual e familiar é conduzido perfeitamente por Gerbase, que dá um ritmo muito bom ao filme, principalmente na transição de gêneros (do drama erótico para o suspense policial) que ocorre no terceiro ato, com Júlio acusado do assassinato de Ana Maria. E para tal, para que esta passagem funcionasse, o roteiro deveria ser bem amarrado. Assinado por Alvaro Teixeira, Giba Assis Brasil, Jorge Furtado (O Homem que Copiava; Meu Tio Matou um Cara) e pelo próprio Gerbase, o roteiro é bastante satisfatório ao dar relevância a todos os elementos inseridos na trama, seja uma foto editada por brincadeira, seja um jornal velho em cima da mesa.
Sem abusar, mas usando muito bem a grua, Gerbase concebe planos interessantes em algumas tomadas, como quando Júlio adentra o quarto de Ana Maria e a observa dormindo de bruços. Mas o que deixa o filme esteticamente mais bonito é mesmo o excelente trabalho de montagem que rende ótimos momentos, como Júlio sendo expulso de casa e as varias interpretações de um assassinato, modeladas de acordo com a versão de cada um dos envolvidos, deixando para a péssima edição de som o pior trabalho técnico do filme, onde a trilha sobrepõe-se a voz dos personagens e ao som ambiente. No que diz respeito a intepretações, com exceção de Maitê Proença (esbanjando beleza e sensualidade no auge de seus 41 anos), todos os outros atores não fazem um trabalho bom. As meninas eram inexperientes, mas Roberto Bomtempo, Werner Schünemann e Nélson Diniz poderiam ter caprichado melhor.
Ainda investindo em uma subtrama paralela recheada de violência e cobiça entre dois meio-irmãos envolvidos no caso que Márcia defende, Tolerância apresenta cenas de sexo quase explícitas em sua primeira metade, mas sempre filmadas de modo a não parecerem (tão) vulgares. Mas também aposta em certa dose de indução, como em uma cena onde Márcia faz sexo oral no marido, mas a câmera desvia do ato e foca somente no rosto de Júlio, seguindo em um traveling para o quarto das meninas onde Ana Maria ouve tudo.
Com personagens com mais erros e defeitos do que atitudes nobres, Tolerância encontra bom uso paraaa pervetsidade e malícia destes em seu satisfatório clímax. Apesar de datado e mau atuado, é um filme sujo e pesado como nos bons tempos do cinema marginal nacional.
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