“Você não me derrubou, Ray.”
O chão parece sempre ser a próxima parada depois do topo para Martin Scorsese. Todos os seus personagens caem depois de subirem alto demais para sustentar suas posições por tempo suficiente até suas obras encerrarem e os créditos finais preencheram a tela. Nesse ponto, personagens como Henry Hill, Newland Archer e Sam 'Ace' Rothstein parecem um reflexo do próprio Scorsese, que após o incrível sucesso artístico de uma de suas grandes obras-primas, Taxi Driver, em 1976, com Palma de Ouro em Cannes e indicação ao Oscar de Melhor Filme, se viu chafurdando o fundo do poço ao se afundar em drogas. Não é coincidência então que o filme realizado para exorcizar em partes essa parte de sua vida seja Touro Indomável, o anti-Rocky, um presente de Robert De Niro para Scorsese e de Scorsese para De Niro, que insistiu até cansar para o diretor adaptar a história do boxeador para as telonas, sendo, como admite sem vergonha o próprio cineasta, parte importante em sua recuperação.
Se Rocky é um zero à esquerda que se torna campeão sempre mantendo seu coração de ouro, o LaMotta de Scorsese – por que o verdadeiro Touro Indomável era pior, disse sua esposa após ver o filme – sempre soube ser questão de tempo até ter o cinturão em seu corpo, mas isso não o torna um exemplo de superação ou algo do tipo como o personagem da vida de Stallone. Ao longo das duas horas de duração o sujeito irá usar os punhos para derrubar adversários de respeito, como Sugar Ray Robinson, mas também para agredir covardemente sua esposa e seu irmão. Irá usar a boca para citar Marlon Brando em Sindicato de Ladrões, mas também para destilar xingamentos às pessoas que ama e qualquer um que lhe contrariar. Não que Scorsese o julgue, por que o diretor não é de fazer isso, é de filmar. E para o cineasta LaMotta apenas é LaMotta, sem traumas, sem justificativas, um ser humano que justamente por ser humano está sujeito a esses caprichos do destino, sujeito ao ciúmes doentio, ao descontrole de sua raiva e uma quase bipolaridade que parecia nortear sua postura nos ringues.
Até por que, quem garante que a lenda não existe por causa da pessoa? O Touro Indomável por causa de LaMotta? Parece ser por ciúmes da esposa que o boxeador destroça o rosto de Tony Janiro (Kevin Mahon), para ele nunca mais ser chamado de bonito. Por querer se castigar ou para mostrar que ao menos no ringue não irá cair, que aceita ser surrado por Sugar Ray no último confronto de ambos. Aí quando é preso por vender bebida alcóolica para garotas menores de idade em seu bar, depois de já aposentado, e grita enquanto socas as paredes da cela que “não é um animal” – e aí ecos dos sons de animais mixados brilhantemente ao som das lutas ao longo do filme retornam à mente -, o protagonista parece muito mais falar consigo mesmo do que com os policiais que o jogaram em sua “jaula”, tem medo de perder sua humanidade, depois de tudo que fez, encontra-se insatisfeito consigo mesmo – encontrava-se desde o início, como representam suas oscilações de peso: se está em forma, passa fome, se come o que gosta/quer, perde a forma. Seu corpo nunca parece confortável para habitar, a mente é consequência ou causa?
A luta de um homem contra ele mesmo, um adversário mais difícil quanto mais ele mergulha em si mesmo. O resto é tudo fúria. A fúria de Scorsese atrás das câmeras, que filma como nunca havia filmado e nunca mais filmou. Cada plano é uma obra de arte, no preto e branco já icônico de Michael Chapman, no ritmo inimitável da montagem de Thelma Schoonmaker, em cada decisão do diretor, dos ringues de diferentes tamanhos para ilustrar o interior de Jake aos trechos da “Cavalleria Rusticana” na trilha sonora de Pietro Mascagni, que tornam Touro Indomável uma ópera de violência física e psicológica, tudo é brilhante. Tudo é cinema em seu máximo. E há De Niro, talvez tão responsável pelo filme quanto Scorsese, mas falar de De Niro, principalmente nessa obra-prima, é tarefa ingrata. Ingrata por que poderia revirar um dicionário atrás das palavras certas e ainda seria injusto ao comentar seu desempenho mais furioso, comprometido – aprender boxe até impressionar o verdadeiro LaMotta e engordar 25 quilos para a fase decadente do boxeador não é pouca coisa – e impressionante, talvez um dos mais impressionantes da história. Você precisa vê-lo em tela, só assim poderá entender a dimensão da performance do ator como um homem campeão do mundo mas que encerra o filme lamentando que “poderia ter sido alguém”, um homem que deu seu sangue nos ringues por que era a única maneira que sabia lidar consigo mesmo.
Mas o sangue que fique nas cordas, claro, nunca no chão. Cinco minutos, Sr. LaMotta.
“Você não entende. Eu poderia ter tido classe. Eu poderia ter sido um desafiante. Eu poderia ter sido alguém, ao invés de um vagabundo.”
Obra-prima!!! Texto e filme!!!!
Porra, valeu, Cristian
Filme que merece um texto como esse.Caralho Pedro, texto fodaa, parabéns.
Valeu, Leo 😁😎