Dentre as definições da palavra “monstro” encontradas no tradicional Dicionário Aurélio, tem uma que chama a minha atenção pela sua simplicidade: “indivíduo que causa pasmo, assombro”. Essa definição é interessante por ser também a mais ampla. Nela, não é preciso ser algo completamente anormal para ser um monstro. Basta causar as sensações descritas na definição. E o cinema é uma prova disso. Em 1963, o genial Alfred Hitchcock transformou inocentes gaivotas e corvos em máquinas de matar em seu grandioso “Os Pássaros”. Em 1971, o então jovem diretor Steven Spielberg lançou “Encurralado”, onde o monstro era...um caminhão. A prova dos nove sobre como fazer um legítimo filme de monstro, sem apelar para gorilas imensos e lagartos radioativos gigantes veio quatro anos depois, com “Tubarão”, adaptação do livro de Peter Benchley.
Nas vésperas do feriado do 04 de Julho (Dia da Independência dos Estados Unidos da América), uma série de ataques fatais de tubarão aterroriza uma pequena cidade praiana que sobrevive do turismo. Então, Martin Brody, o chefe da polícia local; Quinte, um experiente e arrogante pescador; e o oceanógrafo Matt Hooper se lançam ao mar na missão de matar a fera responsável por essas fatalidades.
É notável o modo como o monstro é construído ao longo do filme. Spielberg quis criar uma surpresa. Então, pouca coisa foi revelada nos trailers ou nas imagens promocionais. E na cena de abertura, onde a primeira pessoa é vitimada pelo peixe, nem a sombra dele aparece. Porém o recado está dado: há um tubarão enorme naquela praia. E ele come gente.
Mas antes o bichão dar as caras, foi preciso preparar o terreno. Começando de maneira bem sutil. Quando o policial Martin aparece, com o mar ao fundo na sua janela, sua esposa pede para que ele alimente o cachorro. Depois, o seu filho aparece com a mão sangrando. Esses pequenos detalhes já vão tornando o clima do filme mais sinistro.
Então, novos ataques acontecem. Dessa vez, o jovem Steven já mostra mais da estrela do filme. Uma sombra sua nas águas, e a ponta do seu focinho, com seus dentes para fora. Depois, quando tentam matá-lo, ele não só destrói o enorme píer, como ainda o reboca atrás de seu jantar humano. Ou seja, ele é grande pra chuchu. Junto com isso, começam as investigações acerca do autor dessas fatalidades. E essa parte e muito importante, porque vão criando no imaginário do espectador o monstruosidade da criatura, através das suas terríveis descrições, sejam aquelas encontradas nos livros que Martin Brody lê (destacando o crescente pavor nas suas expressões faciais à medida em que vai descobrindo novas coisas acerca do seu adversário) ou quando o cientista Matt Hooper vê o cadáver e descreve como a boca do tubarão é bem maior que a daquele outro que foi abatido pelos pescadores (que já era bem grande, como fizeram questão de ressaltar). Pelo fato do tubarão ser um animal real, foi preciso dar à ele essas características surreais, para que se tenha um antagonista marcante para a película.
Aqui vale uma observação curiosa. O feriado do filme é o 04 de Julho, Independência dos Estados Unidos, como já foi dito acima. A ameaça vem do mar, assim como os ingleses na Guerra da Independência. Quando foi feita a vigilância do mar, cada homem levava um rifle em mãos, assim como dispõe a segunda emenda da Constituição Norte-Americana, que guardava o direito do cidadão possuir uma arma para se defender de um possível novo ataque estrangeiro. Vê-se aqui, com essa metalinguagem, como esse filme é completo.
Quando o trio de protagonistas vai ao mar para matar o nosso amigo cartilaginoso, ocorre a famosa cena do “You’re gonna need a bigger boat”, onde o tubarão realmente mostra para que veio. Então, a trama foca não somente na caçada ao animal, como também nos conflitos entre o trio, e modo como eles acabam, como na excelente cena da conversa durante a noite. Aquelas falas, em sua boa parte, não possuem um propósito dentro do roteiro. Entretanto, elas enriquecem o filme, tornando os seus protagonistas mais profundos. Esses três personagens dão um ótimo tom ao filme, justamente por serem tão diferentes. Um cientista rico e intelectual e um pescador pobre e grosseiro. E um policial tentando mediar as coisas. Sendo que passam boa parte do filme em um barco em alto mar. Com um tubarão gigantesco querendo comê-los. Isso é que é um cenário tenso!
Spielberg usou um boneco para dar vida ao tubarão. Porém, apesar do mesmo ser muito bem feito, ainda é um boneco. Por isso, o diretor teve uma sacada muito boa para não precisar mostrá-lo o tempo todo na tela, correndo o risco de ficar evidente que ele não era real. Em um certo momento, Quinte consegue prender barris de ar no monstrengo. Com os barris indo de um lado para o outro no mar, fica claro que o tubarão está ali. Isso, somado à sensacional trilha sonora do filme (falar bem de John Williams aqui é chover no molhado) destaca a presença da criatura. Ele não aparece, mas sabemos que está lá.
Essa é uma obra ímpar no cinema porque inaugurou o que hoje conhecemos como “blockbusters”. O filme foi lançado no verão, sendo que naquela época as pessoas preferiam ir à praia a ir ao cinema (irônico não?). Esse filme foi responsável por esvaziar as praias e lotar os cinemas no verão. Se hoje nos vemos tão comumente a frase “Summer ano tal” nos posters dos filmes, é por causa desse clássico de importância incalculáveis à sétima arte.
Obs.: Isso não tem tanto a ver com a obra de arte, porém, do ponto de vista social e, especialmente, ambiental, esse filme foi perverso em mostrar tubarões como monstros assassinos, capazes de afundar um basco pesqueiro. Criou-se a imagem que esses animais extraordinários são ameaças aos serem humanos, sendo que até hipopótamos matam mais pessoas que os tubarões. Porém, isso não interfere na sua avaliação como obra de arte.
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