Eu sempre quis saber o que diabos acontecia na Síria. Era quase como uma obsessão ao avesso, a todo momento, em todos os dias, mais um bombardeio, algumas crianças cheias de poeira e algumas casas destruídas. O imperialismo estado unidense lançava bombas em mais um indefeso e periférico país. Até aí tudo normal. A gente se acostuma, isso já é velho. Antes de eu nascer as páginas de história já estavam empoeiradas com casos semelhantes. Coreia, Nicarágua, Panamá, China, Laos, Camboja, Vietnã (insistentemente), Ioguslávia e até o coitado do Afeganistão, do qual o filme Rambo III (1988) foi colocado em homenagem ao povo afegão, alguns anos antes. Então, beleza, Síria, bombas. As suas mortes nem parecem comover, afinal, eles são radicais, terroristas e talvez até comunistas. O que isso é? Bem, eu não sei, mas eu vi no jornal da noite que não é legal. Por isso a gente se acostuma, não deveria, mas acostuma. O cão atropelado na estrada aqui perto gerava mais comoção e indignação do que centenas de sírios mortos, é claro que uma questão geográfica estava em jogo, talvez aquele cão já tivesse cruzado por mim, mas os sírios, claro, certamente tiveram o que merecem, afinal, assim como os vietnãmitas, cambojanos, laosianos e outros "anos", eles certamente são terroristas. Ou eram, não sei mais.
Até que um dia fico sabendo que um documentário - sírio, então, não qualquer documentário - é indicado ao Oscar, e mais, seus realizadores não conseguem ir a premiação. Vejamos, não conseguir é diferente de não querer ir por alguma causa política em forma de protesto, ou simplesmente por não querer ver tanto glamour falso (como fazem Woody Allen e Terrence Malick), é realmente não conseguir mesmo. Não é uma oportunidade a se perder, imagina subir lá, para todas as televisões do mundo, e ofender a política homicida do governo dos EUA? Qualquer coisa menos que isso já seria uma vitória.
Aí entra o documento sobre Aleppo, a cidade em ruínas, diversos homens são filmados ao longo do seu (normal?) cotidiano. Desde pequenas caminhadas ou até mesmo mostrar um resgate heroico que fora filmado aos filhos. Neste sentido, o documentário é mais sobre a existência desses homens através de uma rotina completamente alterada do que um filme político. E também neste sentido, não acredito na crítica de muitos que o filme recebeu por ser um tipo de "embuste cinematográfico", no qual faltaria uma narrativa mais fluída, ou até mesmo enquadramentos melhores. Se fosse somente por isso, certamente haveriam ainda menos produções sobre a Síria na atualidade, todo aquele pessoal está ali no olho do furacão e é difícil sempre manter uma coerência necessária. Por isso, ao analisar o documentário, pendi muito mais para o elemento humano, muito mais importante para mim - aqui, e mais à frente comentarei sobre isso, mas concordo com a falta de aprofundamento em muitos questionamentos. Por que nunca citam nada relativo aos EUA? Nem OTAN? ISIS? Falta essa base teórica tão importante ao documento, entretanto, a sua coragem não pode ser só baseada nisso. Pois repito: se Últimos Homens em Aleppo peca por seu elemento político e narrativo, isto jamais acontece quando falamos do elemento humano.
A questão é que tanto o produtor executivo Kareem Abeed e Mahmoud Al-Hattar, fundador dos Capacetes Brancos, que aparece no documentário, não puderam comparecer a premiação por problemas de vistos de viagem. Segundo Al-Hattar, para um jornal dos EUA: “..A Rússia, (o presidente sírio) Bashar Al-Assad e todos que representam as autoridades e distribuem armas para suprimir o povo da Síria", seria o seu grande motivo de ter ido ao Oscar. Talvez isso explique o porquê ele não foi, ou porquê o documentário não saiu com a estatueta. O próprio presidente dos Estados Unidos da América, não permitiria a entrada de cidadãos sírios por bloqueios civis, então tudo bem destruir o seu país, mas não, nada permissivo você vir falar na minha premiação cinematográfica. Fica evidente o quanto este documento fílmico traz de político, embora a minha maior crítica a este seja quando nega essa possibilidade de análise.
Para a minha decepção, o documentário não trata abertamente de questões políticas, tratamento internacional, causas internas e conflitantes. Mas é bastante óbvio, ao estilo quase jornalístico, que as gravações são presentes e não possuem o distanciamento necessário para isso. É claro que serve como uma panorama de dramas pessoais, mas nada mais além, em um momento em que se buscam respostas, alternativas, até mesmo razões para tanta destruição. A cena em que um grupo de homens joga futebol, envoltos de escombros, fez-me lembrar da quase classificação da seleção da Síria para a Copa do Mundo (Rússia) em 2018. Uma hora a bola se perde em meio a pedaços de cimento e tijolos espalhados, em outra, um indivíduo externo aparece e fura a bola simplesmente por ódio. É uma nação quebrada, cheia de dilemas, tomada pelo medo e pela raiva.
Num momento bastante íntimo, o diretor capta uma cena de reflexão política importante demais: “Aonde está o mundo? Os vizinhos árabes? A dignidade morreu”. Qual seria a reação deste homem se pudesse saber que aqui no Brasil por exemplo, apesar de toda a tirania e barbárie que acontece em seu país, a mídia praticamente não se aprofunda e sequer pretende entender ou explicar as contradições dessa guerra. Mais do que não se importar, não querer entender parece um funeral humano muito pior. É como se a fraternidade estivesse morta, triste constatação que percorre na cabeça destes homens. Como ficariam estes mesmos homens se soubessem, que de tão subordinados que somos, só nos interessamos em ver a tragédia síria se por ela soubermos alguma informação dos EUA e talvez da Federação Russa, que nos interesse, claro. Entendemos que a nossa vida cotidiana pode ser ocupada, e talvez tão perigosa quanto o cotidiano sírio, mas parece haver um muro muito desumano entre nós - resto do mundo - e a comoção.
Os homens de Aleppo já nem parecem homens, acostumaram-se às crianças mortas e os pedaços adultos espalhados em mais uma nova explosão, sua figura humana só é lembrada pelo tênue semblante de cimento e pó que marca seus corpos o dia inteiro. Seus inimigos, diferentemente dos tempos do Vietnã ou da Segunda Guerra, não são alvos fáceis. A contemporaneidade nos deu a capacidade, que o homem medieval acharia ingrata, de matar sem olhar nos olhos da nossa vítima. Então, por isso, há uma confusão se afinal de contas aquela aeronave é síria, russa ou americana, é muito rápido e muito distante, assim como o medo, assim como as vidas em Aleppo.
A Guerra Civil na Síria foi iniciada em 2011 quando uma onda de protestos se intensificou e visou a derrubada de Bashar Hafez al-Assad, seu partido político, o Partido Baath, possui uma ideologia conhecida como baathismo, que vê a religião no Estado, diferentemente da ideologia naaserista, de uma forma mais conservadora, atuando separada como forma de preservar seus ideais religiosos. Curiosamente, o Partido conseguiu eleger Bashar nas últimas 3 eleições (sim!), em 2000, 2007 e 2014 - ainda que a sua última vitória tenha sido um menos ampla que anteriormente, ganhou com 88,7% dos votos! O que pouca gente sabe no exterior é que o pai de Bashar, Hazer al-Assad, governou a Síria durante 30 anos antes de seu filho, que o sucedeu imediatamente após a sua morte. O baathismo - que busca elementos socialistas, pan-árabes e nacionalistas - tomou o poder em 1963 através de um golpe militar (a nomeada Revolução de 8 de março) em conjunto com outras “causas comuns”, como o Movimento Nacionalista Árabe e o Movimento de Unidade Socialista, que foram sendo expurgados de dentro do governo aos poucos. O novo governo a partir de 1963 era uma mistura de exército e partidos políticos e durante os seus primeiros anos de existência, aumentou o salário dos trabalhadores, aumento o acesso aos sistemas educacionais e introduziu uma tímida reforma agrária. Com o passar dos anos, o regime tornou-se um misto de “ditadura” e “populismo”, mas sempre se manteve no poder. Isso até a Primavera Árabe - onde, depois de Bashar al-Assad ter garantido uma pequena abertura da atividade religiosa e de uma crise econômica - que eclodiu em países como Síria e Egito, pedindo por melhores condições econômicas e mais liberdade democrática, fazendo sacudir o regime de al-Assad, mas de todas as nações que entraram em conflito interno, a Síria foi a única que até agora (abril de 2018) ainda não derrubou o seu mandante. Já foram Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen.
Todo esse conflito social, religioso e político está escancarado nas faces dos homens de Aleppo, e são poucas as mulheres filmadas, embora saibamos que muitas não mais residem ali, enquanto outras perderam a vida nos bombardeios. Logo, o que nos é mostrado, são crianças e homens. Tristemente, se por vezes vemos crianças brincando na rua ou mesmo no celular, outrora, elas podem ter sido encontradas em baixo de toneladas de cimento. Mas estranhamente (talvez nem tanto) há espaço para a comédia, para os risos fáceis e para o lazer. O futebol, a passada pelo comércio do centro no fim da tarde, a brincadeira das crianças, a amizade.. Porque afinal de contas, a Síria ainda é habitada por humanos e estes, consequentemente, agrupam vida.
Porém, se em 2006, Aleppo era considerada a capital islâmica da cultura mundial e chamava a atenção internacional por suas paisagens distintas e uma arquitetura medieval preservada, tudo isso mudou a partir de 2012. Habitada há pelo menos 5.000 anos, a maior cidade Síria em termos de população é um hoje um amontado de destroços, e pouco podemos entender o que é antigo ou novo, até mesmo trabalhos arqueológicos muito importantes foram encerrados na região. O que o diretor Firas Fayyad nos mostra ao andar por suas ruas é uma beleza escondida, esquecida em meio a bombardeios. Seu personagem indireto é a cidade, suas estrelas principais são o próprio povo, sua escolha em prezar pelo conteúdo humano de uma guerra é bastante chamativo, mas Fayyad crê no cinema político: “Meus colegas e eu fizemos Last Men in Aleppo porque acreditamos no poder do cinema e das artes para chamar a atenção para a injustiça.” Essa injustiça também é estarrecedora, o maior êxodo humanitário da atualidade pertence aos sírios (5 milhões de pessoas).
Acusando a Rússia, tanto por sua câmera ao filmar seus bombardeios em solo sírio, quanto por fazer uma anti-propaganda massiva para desequilibrar o apreço internacional do documentário nos festivais de cinema do mundo, o cineasta, que leva uma cicatriz percebível em seu rosto, diz sentir medo. A mídia dos Estados Unidos, quando entrevistado, Fayyad disse nunca pensar que um cineasta poderia ser ameaçado, impensável viver na paranoia que conhece tão bem hoje em dia. Seu filme, disse ele, é uma espécie de afronta para aqueles que não querem saber da verdade, mesmo que seu documentário seja um simples diário de guerra sobre sobreviventes comuns. Há poucas denúncias diretas, embora tenha incluído imagens de manifestações contra Bashar Al-Assad.
Os Capacetes Brancos, da qual a maioria dos homens filmados é integrante (aqueles com um símbolo azul e amarelo), estando para lá e para cá a todo momento do documentário, nos últimos anos veio sofrendo bastante com as chamadas Fake News. Formados por cerca de 4.000 voluntários, um pouco menos ou um pouco mais, são reconhecidos pelo resgate de milhares de civis na Síria, entre seus integrantes estão professores, médicos e até mesmo alfaiates. Se uma hora ou outra, vermos estes portando câmeras ou celulares durante a filmagem, precisamos entender que é onde reside a sua força. O fato de gravarem diversos resgates e situações políticas em suas ações, tornou o grupo visado, por atrapalhar qualquer narrativa falsa, principalmente do governo russo, de modo a interferir na Síria. Por isso, uma outra guerra foi travada nas redes sociais nos últimos anos, a fim de associar os Capacetes Brancos a grupos terroristas, como a Al-Qaeda, por exemplo, e até mesmo financiada por George Soros, investidor.
Há uma metáfora lindíssima sobre o “peixe fora d’água”, de modo a simbolizar a resistência dos homens de Aleppo em permanecer na sua terra natal, “Eu morreria agonizando como esse peixe fora da água, se eu tivesse que sair daqui”. Como se não bastasse também, a atitude dos homens em meio a guerra, depois de limpar uma fonte antiga em meio aos destroços, ainda fora feita de lar para alguns peixes que compraram no mercado. Assim, o peixe acaba adotando um simbolismo lindíssimo em meio a tanta matança e desespero.
A questão é que a Guerra Civil Síria iniciada em 15 de março de 2011, parece longe de acabar, o que causa ainda mais sofrimento para o povo daquela região, e neste momento de notícias duvidosas que rondam o mundo, com narrativas em choque, filmes como Last Men in Aleppo (2017) elucidam muitas pessoas e cumprem com uma função fundamental (também) ao cinema de registrar um momento histórico, bem como informar a sociedade do presente dos conflitos globais. Quem sabe este filme não tenha um valor imensurável daqui há 100 anos, o quanto teria um filme feito sobre a sociedade alemã durante a Segunda Guerra ou a húngara durante a invasão das tropas soviéticas, e assim por diante.
Ainda que, como eu já afirmei, não se trate de um relato profundo sobre os acontecimentos, e sim uma filmagem dramática destes, seguiremos esperando por mais trabalhos como aqui, que preferencialmente possuam um certo distanciamento e com mais informações disponíveis, podendo assim, fazer uma análise menos redundante e incisiva dessa guerra na Síria. Que é, sem dúvida alguma, um assunto muito profundo, que já vem se desenvolvendo desde os tempos da Primeira Guerra Mundial, com diversas figuras políticas desconhecidas do Ocidente como protagonistas. E hoje, o que ocorre entre Síria, Rússia e Estados Unidos (ainda que pouco citado no documentário pelos bombeiros), ainda tem muito da Guerra Fria, quando URSS e EUA guerreavam de diversas formas por zonas de favorecimento. Quem sabe um dia, alguém semelhante ao cineasta Michael Moore por exemplo, mas não necessariamente ele, consiga reunir documentações conjuntamente a opiniões fortes para nos mostrar através da telona o que os jornais do dia a dia não alcançam.
Não se surpreenda ao ver a indagação dos Capacetes Brancos debatendo sobre a dúvida de tal objeto ser uma bota ou um pé, ser um pé adulto ou não, masculino ou feminino, tudo com a maior naturalidade possível. A naturalidade de quem convive com a morte. Porque o documentário parece servir como um grande drama que nos faz lembrar que o ser humano é capaz de se adaptar a tudo, até mesmo ao que consideraríamos inadaptável. Assim, precisaríamos de uma continuação, uma parte de seguimento, um Homens de Aleppo 2, poderia durar apenas 5 minutos, talvez menos, bastando perguntar se estes ainda se consideram “homens”. Embora tal questionamento futuro não fosse possível, por ficarmos sabendo (e talvez isso não seja tão inesperado) que praticamente todos os homens filmados aqui acabaram morrendo.
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