Um filme sobre Kitagawa Utamaro, um dos mais conhecidos artistas plásticos veiculadores do estilo japonês ukiyo-e, poderia muito bem resultar em uma espetacularização hiperssexualizada do corpo feminino, haja vista o fato de esse mesmo corpo ter sido constantemente valorizado e tematizado nas diversas obras do famoso pintor (aparentemente, um verdadeiro amante do sexo feminino). No entanto, é a sensibilidade aguçada e não o possível desejo de Utamaro o evocado por outro renomado artista nipônico, o cineasta Kenji Mizogushi, em seu belo longa-metragem “Utamaro e Suas Cinco Mulheres”. No caso, é a partir do retrato do célebre pintor de gravuras, bem como a partir de sua estética cinematográfica particular, que Mizogushi efetua um interessante estudo sobre o olhar e sobre os desejos, ansiedades e realizações contidos nesse olhar ou, mais especificamente, na empreitada de uma visão.
Autodeclarado como único pintor capaz de conceder vida às mulheres de suas gravuras, Utamaro (Minosuke Bandô), além de bastante sociável e carismático, é um homem sempre atento às possíveis grandes modelos que Tóquio, ou os prostíbulos de Tóquio, podem lhe oferecer – e ao longo da narrativa acompanhamos algumas das inusitadas empreitadas do mestre além das histórias particulares de algumas de suas modelos e de seus companheiros mais próximos. Mas tanto nas nuances da narrativa quanto na apresentação imagética dos eventos já percebemos que a real protagonista do longa-metragem não se trata de Utamaro ou mesmo uma de suas mulheres, mas sim a própria visão em si, o próprio olhar que vasculha os prostíbulos, as mansões, as vielas ou os campos em busca de algo que o satisfaça. Talvez o termo “pornográfico” não seja o mais adequado para esse contexto (narrativo ou histórico), mas pode-se dizer que Mizogushi explora justamente a natureza do “olhar pornográfico” ou, no mínimo, do olhar ávido pelo prazer de sua captura – e o próprio ato dessa captura já nos revela interessantes noções a respeito do que esse olhar verdadeira e inconscientemente representa.
Já nas primeiras cenas Mizogushi evoca o ato desse olhar, com a câmera se aproximando gradativamente da cidade da narrativa (como se quisesse observar de perto aquele local) para, em seguida, registrar o rico cortejo de cinco mulheres, posicionando-se de lado e a uma certa distância para contemplar, num único take, os corpos inteiros de cada um dos integrantes dessa comitiva. Esses primeiros momentos, em verdade, já antecipam o estilo “um plano por cena” utilizado largamente ao longo do longa-metragem (e da própria filmografia do cineasta). No caso, compondo as cenas várias vezes por meio de um único take no qual a câmera engloba tanto as personagens da narrativa quanto os ricos e complexos cenários, apresentados inclusive sob um grande efeito de perspectiva, Mizogushi instiga o espectador a exercer o seu próprio olhar, a partir, primeiramente, do próprio convite ao “desbravamento” desses cenários tão tridimensionais e intricados (e nesse sentido deve-se mencionar a ótima fotografia de Shigeto Miki). Mas esse olhar é igualmente instigado pelos movimentos (ou não-movimentos) da câmera, a qual em vários momentos parece propositalmente se distanciar das personagens, quase as afogando na riqueza perspéctica do ambiente da cena, para justamente provocar o olhar do espectador, ansioso em se aproximar daquele núcleo mais íntimo de personagens ou mesmo daquele âmbito especial e distanciado do cenário no qual um elemento importante da cena está contido.
Um interessante exemplo dessa provocação ao olhar é a primeira aparição da personagem Okita (Kinuyo Tanaka). A princípio, a câmera se situa bastante próxima a moça (no que poderíamos chamar de plano americano) acompanhando-a até a entrada de sua casa e, consequentemente, dirigindo a atenção do espectador para ela. Entretanto, ao chegar no local, a câmera torna-se subitamente estática enquanto que Okita continua seu percurso dirigindo-se mais e mais ao fundo do cenário até “desaparecer” numa discreta porta situada à direita do quadro – e o espectador que antes acompanhava a moça logo a vê escapar do domínio de sua visão, mesmo com seus ansiosos esforços de continuar a “segui-la” até esta sumir de vez em um vão do cenário que o próprio espectador não havia anteriormente reparado. Mas se Mizogushi chega ao ápice de sua “crueldade” com pontuais cortes súbitos que interrompem uma ação dramática prestes a eclodir, o cineasta parece igualmente se divertir nessa “empreitada contemplativa” ao surpreender o espectador com a ênfase inesperada a um dado elemento ou personagem pertencente desde o início àquela cena mas não percebido até então pelo espectador, como na sequência do ateliê em que constatamos subitamente (e com um divertido espanto) a presença da personagem Yukie (Eiko Ohara). Mas mesmo a câmera “maldosa” de Mizogushi apresenta seus momentos de maior “bondade”, seja na trágica penúltima sequência em que, em um de seus únicos closes, a câmera se aproxima de uma personagem em especial como num ato de piedade e consideração em relação às dores da mesma, seja na sequência na mansão do lorde Matsudaira, na qual, como se estivesse atendendo aos desejos de Utamaro, a câmera vislumbra mais de perto as amantes do nobre se despindo em série ou nadando no lago em busca de peixes (e é belo como, após o mergulho das amantes, a câmera, nas tomadas externas ou mesmo submersa na água, apresenta essas moças como se fossem sereias de água doce).
Mas é nesse convite à contemplação das imagens ou mesmo nessa provocação ao olhar do espectador que Mizogushi incorpora a própria visão do artista Utamaro. Instigado pela beleza de suas modelos, o pintor decide explorá-la e contemplá-la tal como o espectador que deseja vislumbrar aquele plano ou aquela cena. Utamaro vive de sua visão ou, mais especificamente, do incitamento de sua visão, como bem ilustra a cena na qual o pintor, vítima de uma falta de inspiração, decide fechar as janelas e portas da casa para, sob a luz de uma única vela, tentar aguçar ou provocar o seu olhar. Além disso, é notável a certa busca de Utamaro por um constante e caloroso entrosamento com seu círculo de amizades, cortesãs, companheiros e demais conhecidos, como se o forte vínculo social lhe assegurasse a oportunidade de efetivamente olhar aquele mundo e aquelas vidas. Aliás, é nessa relação entre o ver e o estar próximo que o longa-metragem oferece uma interessante perspectiva a respeito do que esse ver implica ou mesmo pretende.
No caso, como bem atestaria anos mais tarde o autor John Berger em seus escritos sobre os retratos naturalistas de famílias burguesas e suas riquezas, o ver parece ser uma ferramenta para o possuir. Quando Utamaro contempla o corpo feminino e desenha esse corpo para uma contemplação a longo prazo, o pintor não deixa de se apropriar desse corpo, de possuí-lo no domínio de sua visão para o gozo de seus desejos tanto estéticos quanto francamente sexuais (basta lembrarmos na supracitada cena da mansão do lorde a sincera excitação por parte de um Utamaro que acaba de se deparar com as beldades do fidalgo). Essa posse é simbolizada já no primeiro ato da narrativa quando, ao encontrar-se com o belo corpo de uma cortesã, Utamaro pinta diretamente nas costas da mulher, com sua arte, baseada na contemplação de seu olhar, literalmente se apropriando daquela forma, superfície e carne. É nesse sentido que Utamaro reivindica a presença de “vida” em seus trabalhos plásticos, uma vez que será essa vida contida na gravura ou na pintura que possibilitará a posse crível da mulher celebrada por essa arte – e quando Utamaro “arruma” um desenho tradicional de uma figura feminina concedendo tridimensionalidade ao corpo feminino representado, ele quase literalmente afirma esse anseio por uma posse na medida em que torna aquele corpo mais tátil e volumoso.
Aliás, é por essa “posse visual” do corpo ou da realidade em geral que Utamaro é condenado. Ao desenhar uma das amantes do lorde Matsudaira, a jovem Oran (Hiroko Kawasaki), Utamaro acaba se apropriando daquela mulher, roubando aquele corpo do olhar privilegiado do lorde para a livre contemplação do olhar do artista e de seu espectador. Utamaro, dessa forma, comete um crime talvez pior do que o efetivo furto da moça. O seu olho se apropriou de uma imagem proibida, incorporando-a à sua sensibilidade e à sua memória e privando-a de qualquer exclusividade. Mesmo que numa posse virtual ou ilusória, o fato é que ao olhar o sujeito tem, e é esse delito o reconhecido pelas autoridades locais – e é condenando Utamaro a 50 dias sem desenhos ou gravuras, que essas autoridades se previnem dessa transgressão do olho ou da Arte. Todavia, é interessante como Mizogushi explora a possessão desse olhar a partir da perspectiva das próprias modelos ou ex-modelos de Utamaro, aqui nobremente humanizadas mesmo sendo submetidas ao papel de objeto figurativo do artista.
Tomemos como exemplo a supracitada Okita. Em oposição à maior passividade das modelos de Utamaro, Okita é uma mulher definitivamente autônoma em relação à sua imagem e à sua posição ou localização, como bem demonstra Mizogushi em cenas como a do breve diálogo entre Utamaro e Okita, durante o qual esta se encontra sentada no parapeito de uma janela, com seu corpo ultrapassando as fronteiras da moldura dessa janela, da mesma maneira que ultrapassa as molduras das gravuras do pintor. Em verdade, Okita não só é a verdadeira e única dona de sua imagem como também assume a condição de manipuladora e efetiva detentora de seus interesses amorosos, como se fosse uma versão feminina de Utamaro que literalmente se apoderasse de seus modelos masculinos em prol de suas paixões e desejos. Assim, quando se apropria do jovem Seinosuke (Kôtarô Bandô), ao ser interpelada pelo criado/confidente de Utamaro, Takemaro (Mimpei Tomimoto), Okita confina o novo amante no aposento da casa noturna que estão ocupando, tal como uma pintora que confina seu novo objeto artístico e imagético nos limites do seu quadro (e de fato, na respectiva cena, a porta do aposento remete a uma moldura). Do mesmo modo, ao se apaixonar fortemente pelo jovem Shozaburo (Shôtarô Nakamura), Okita não hesita em percorrer quilômetros para alcançar o amado e quase literalmente tomá-lo para si, independente das possíveis objeções do sujeito (e o cigarro que ela utiliza para torturar levemente o rapaz assemelha-se visualmente ao pincel do Utamaro que possui sua modelo).
Entretanto, talvez em oposição ao próprio Utamaro, Okita reconhece a posse que seu olhar representa, e é por isso, inclusive, que a mulher deseja a exclusividade de seu amado Shozaburo, não desejando o mínimo contato desse com o interesse de outras mulheres (e é na luta por essa exclusividade, no final impossível, que Okita encontra um desfecho trágico). Quanto às demais mulheres da narrativa, estas também parecem ter noção do que o “ingênuo” olhar masculino sobre seus corpos representa. Oran, a nova modelo de Utamaro, reconhece o interesse subentendido dos homens que a pintam e acaba se rendendo a esse interesse pelos promissores prazeres que ele acaba lhe proporcionando. Já a inocente Yukie sofre justamente por não ser o “alvo” desse olhar, haja vista o olhar desinteressado ou mesmo a falta desse olhar por parte do homem que tanto ama – e a mise-en-scéne ilustra muito bem essa situação ao constantemente opor Yukie aos homens com quem interage, seja com estes lhe dando as costas seja com a própria moça evitando o olhar masculino alheio ao mergulhar em suas lágrimas e desolações (como na bela cena em que a moça, mais uma vez rejeitada, cai no pranto enquanto que Takemaro a observa por detrás da tênue “cortina” formada pelos ramos de uma árvore). Yukie, por fim, torna-se o símbolo da tragédia particular de uma mulher educada a reprimir seus desejos em prol de um decoro social mas rejeitada por uma sociedade machista excitada pela falta desse mesmo decoro.
Mas além dos âmbitos mais “voyeuristas” ou “pornográficos” da história (aspas por conta do outro contexto da narrativa), a posse do olhar é algo que se projeta para um âmbito mais universal da própria visão e da própria imagem. Mizogushi reconhece e afirma isso ao instigar nosso olhar. A partir das singularidades de sua câmera (contrárias a uma convenção cinematográfica), o cineasta provoca a posse que o espectador reivindica do próprio plano, cenário e sequência. Demonstrando que aquele espaço fictício é apresentado sob a óptica independente do filme, Mizogushi desafia a posição dominante do espectador como dono daquela imagem ao afirmar de certa forma que é o autor cinematográfico o efetivo detentor daquele espaço fictício. Mizogushi, portanto, ainda é o senhor desse mundo e nós, como Utamaro, desejamos explorar esse mundo para atender aos infinitos anseios de posse inconscientemente nutridos por nossa visão e dolorosamente negados pela câmera “maldosa” do cineasta. Afinal,Ver é Ter.
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