Não é de surpreender que "V de Vingança" tenha despertado sentimentos distintos em vários espectadores e críticos, considerando que a história em quadrinhos na qual se baseia era um tanto polêmica quando as sua publicação, nos anos 80 muito mais agora, uma vez que seu protagonista pretende dar início a uma revolução na sociedade em que vive a partir de procedimentos que incluem o uso de bombas contra prédios públicos. No entanto, o que é um pouco surpreendente é que todas essas reações que o filme despertou não somente fazem sentido, como o filme dá razão a quase todas elas. Trata-se de um curioso exemplar de cinema onde o argumento principal é coeso e o mais curioso, escrito pelos irmãos Wachowski...
Já se tornou uma constante as divergências entre cineastas e o roteirista de quadrinhos Alan Moore. Ele nunca gostou de nenhuma das adaptações de suas histórias para a telona. Não podemos culpá-lo disso, já que várias heresias foram cometidas com a desculpa de tornar a história mais comercial e mastigada para o grande público, vide o merecido fracasso "A Liga Extraordinária". Depois de ler o roteiro, Moore exigiu que seu nome não aparecesse nos créditos de "V de Vingança". Com isso, o único a ter seu nome creditado foi o desenhista David Lloyd. Mas justiça seja feita, dessa vez a ranzinzagem de Moore extrapolou, pois o filme é uma ótima adaptação. O roteiro feito pelos irmãos Andy & Larry Wachowski conseguiu resolver até algumas lacunas da história original...
A história é jogada alguns anos no futuro, em 2020. O cenário, porém, segue o mesmo, a Inglaterra. Um ditador fascista, Adam Sutler (John Hurt, lembrando Hitler), rege o país utilizando táticas de repressão e instruções televisionadas. Ele comanda a mídia e suas forças de segurança, lideradas por um sujeito chamado Creedy, têm como rotina sequestros, torturas e assassinatos daqueles que se opõem ao regime. A censura impera e se estende por todas as formas de manifestação cultural; das artes à religião. Claro que não esperamos aqui que os cidadãos comecem a explodir prédios públicos e fazer justiça com as próprias mãos como o mascarado personagem de V de Vingança. A essência da idéia definitivamente não é essa. Os Wachowski também sabem disso e sua opção pela tradução menos radical e extremada da HQ de Moore, especialmente seu desfecho, funciona a contento na tela grande, apesar de polêmica aos olhos puristas.
V de Vingança apresenta uma quase saudosa volta dos diálogos ao primeiro plano narrativo de um “filme de ação” (usando o termo bastante genericamente), contando com discussões de ordem político-social como princípio básico do seu interesse, algo que convenhamos não acontece normalmente. Além disso, é igualmente verdade que uma das mudanças que melhor funciona da HQ original para o filme é a substituição do rádio pela TV como forma de comunicação do governo totalitário, e especialmente pela transformação desta (a TV) menos num braço estatal por si e mais numa instituição independente que serve aos interesses deste estado (aqui a referência ao governo Bush é clara). Junto com a constante supressão dos direitos individuais que vemos em diversas cenas do filme, e com o tratamento ficcional da questão do medo como ferramenta básica de dominação, tratam-se dos momentos mais fortes do filme em termos narrativos, e algo que deve ser louvado neste cinema de grande público de hoje.
Os atores escolhidos foram de uma felicidade atroz. Natalie Portman no papel de Evey, manteve um seguro sotaque inglês e deu as nuances necessárias para que tornassem críveis as mudanças de perfil de seu personagem, conforme os novos acontecimentos. Também não podemos esquecer que mesmo de cabelo raspado e com hematomas, ela permanece uma gata. Que vontade de pegá-la no colo, quando ela jazia naquela cela escura e úmida, após as sessões de tortura e cuida-la dela noites a fio e depois descer o bambu! Stephen Rea também impressiona como o inspetor Finch, que também ganhou algumas alterações. Nos quadrinhos, Finch foi incumbido de descobrir quem era V, assim sendo ele além de investigar, entra numa viagem regada a LSD para o intuito de entender seu antagonista. Talvez com o hoje tão bonitinho 'politicamente correto' essa situação não teria sido bem vista pelos puritanos e retirada da fita. Completando o elenco temos Stephen Fry como Gordon, John Hurt como o chanceler Sutler e Tim Pigott-Smith como Creedy, braço direito do chanceler. Todos também estão otimamente caracterizados com detalhe óbvio para Hurt que desde jovem sempre foi um ator fantástico.
Hugo Weaving, no papel de V, consegue dar vida a um personagem que usa uma máscara durante toda a projeção. É de se imaginar a dificuldade, já que ele não podia usar o recurso da expressão facial para facilitar seu trabalho. Com o simples uso do tom de voz e sua inflexões, auxiliado pela sua costumeira eloquência, ele rouba todas as cenas que aparece. Suas falas e discursos usando os textos de Shakespeare são intensamente charmosos. E olha que ele não foi a primeira escolha. James Purefoy, o primeiro nome dos realizadores, abandonou o projeto por divergências criativas com os irmãos Wachowski e olha que Hugo Heaving já havia trabalho com os irmãos. Mesmo que o ator protagonista não tire a máscara em momento algum, a escolha de Heaving foi muito mais acertada, visto que Purefoy é um bom ator, mas não possui nem um terço do prestigio e força que Heaving tem.
Para comandar a bagaça toda, foi escalado o competente James McTeigue, que faz uma ótima estréia como diretor. Antes ele tinha sido assistente de direção de vários renomados profissionais, como George Lucas em “Guerra nas Estrelas: Episódio II – Ataque dos Clones” e dos próprios irmãos Wachowski na trilogia de “The Matrix”. Havia um certo temor de que o diretor James McTeigue fosse mera marionete para os donos do filme, os Wachovski. Não é o caso. Apesar de algumas cenas nas quais o estilo dos irmãos é particularmente visível, especialmente nas sequências de ação, o filme é bastante contido e 'pé no chão'. Ainda na parte técnica, McTeigue mostra um excelente trabalho ao lado de Adrian Bidlle que nos brindão com uma fotografia irretocável. Um figurino interessante ficou a cargo de Sammy Sheldon que apresenta um visual retrô e ao mesmo tempo futurista. A Direção de Arte de Owen Paterson também é soberba e apesar de escura em vários ambientes os detalhes do covil de V por exemplo são sensacionais, desde as obras de arte até mesmo a decoração com objetos antigos. A trilha sonora de Dario Marianelli é bela e aumentada na hora certa. Mas nada disso funcionaria, se não houvesse uma Montagem/Edição ágil e eficiente por parte de Martin Walsh.
Enfim, "V for Vendetta" tem um visual perfeito, atuações marcantes e uma história a ser pensada. Custando "apenas" U$S 50.000.000,00 a fita arrecadou mundialmente algo em torno de U$S 100.000.000,00 valor razoável. Basta boa vontade para que tiremos a sua máscara de blockbuster hollywoodiano e olhemos seu cérebro e alma...
Muito bom, nunca menosprezei este exemplar!