Poucas vezes o ser humano foi tão esmiuçado quanto em Vá e Veja (Idi i smotri). Justamente por isso, falar sobre os aspectos técnicos de um filme que nos deixa tão perplexos é uma tarefa complicada. De que importam afinal aspectos técnicos, quando somos apresentados a semelhante barbárie que só nós somos capazes de produzir? Mas podemos tentar. Ainda mais quando Elem Klimov, o diretor do longa em questão, foi tão feliz em todas as suas escolhas para mostrar as escolhas mais infelizes da humanidade.
O filme começa com crianças brincando de guerra num terreno abandonado. Brincadeira inocente que muitos já fizeram quando crianças, sem dimensão nenhuma do que o combate realmente é. A diferença é que esses meninos brincam em um verdadeiro terreno de guerra abandonado, com ossadas de soldados mortos e armas de verdade esquecidas sob a terra. A diferença é que esses garotos vivem em plena Segunda Guerra Mundial e estão prestes a se tornarem homens da maneira mais atroz possível, tornando-se soldados.
Florya (Aleksei Kravchenko) sonha em combater os nazistas, ajudar seu povo e livrar sua família do horror da matança. Para isso ele se junta a um movimento de resistência bielorrusso que luta contra o exército alemão que invade seu país. Semelhante à milícia russa que Tolstói apresenta em seu Guerra e Paz, esse grupo de rebeldes retratado por Klimov, luta com o que tem. Escondendo-se nas florestas e com o objetivo de combater o inimigo de todas as formas possíveis, esses homens são vistos pelos moradores locais como verdadeiros heróis quando não há nem sinal do exército oficial da nação.
A estética, muito semelhante à que Tarkovsky imprimiu na década de 1970, em O Espelho (Zerkalo) e Solaris (Solyaris), é colorida e ao mesmo tempo fria. Retratando bem o clima nebuloso do inverno soviético, neblina e chuva se revezam para ilustrar o sofrimento que irrompe de todos os lados a atacar as personagens. Klimov também bebe da fonte de Tarkovsky na construção de seu protagonista. De um modo mais extremo e cru, Florya lembra o garoto Ivan, interpretado por Nikolai Burlyayev, em A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo).
Assim como Ivan, Florya encontra a referência de um pai na milícia. Kosach (Liubomiras Lauciavicius), porém é um pai duro, que o deixa para trás quando seu exército segue à caça do inimigo. Incumbido de resguardar o posto, Florya é esquecido pelos companheiros e encontra Glasha, uma bela jovem que permanece ao seu lado quando bombas caem e os primeiros nazistas aparecem. Antes tudo era rumor, agora, com as explosões ensurdecedoras e os gritos, tudo se torna real.
A partir daí Florya desmorona e nós caímos com ele. A câmera corre acompanhando os passos apressados do garoto, que nunca chega a tempo de evitar a tragédia. O jovem busca por sua família, mas se depara apenas com montes de corpos. Encontra seu povo, miseráveis morrendo de fome e frio, sem casa nem abrigo. O garoto apenas chega a tempo de registrar o genocídio e a miséria, a dor e o ódio. E nós nos sentimos tão impotentes quanto ele.
Em pouco mais de 140 minutos, Florya envelhece uma vida. Olhando para trás, temos a impressão de que o filme durou também uma vida, mesmo em nenhum momento sendo monótono ou cansativo. O garoto se banha na chuva, dança com sua companheira, foge de tiros e rouba para matar a fome. O retrato da velhice se compõe aos poucos, cada fato contribui para a senilidade que se aproxima. A câmera se torna o portal para o quadro de horror que é o rosto do protagonista.
A partir da segunda metade, é difícil não se lembrar de Vergonha (Skammen), de Ingmar Bergman. Assim como o cineasta sueco, Klimov se interessa mais em mostrar os civis em meio à desordem, do que os soldados, geralmente protagonistas em filmes do estilo. O ápice da obra está na sequência escatológica em que os nazistas tomam um povoado de assalto, escorraçam os moradores, estupram as mulheres e, ao final, praticam um ritual sádico de amontoar pessoas dentro de uma igreja e atear fogo nela, deixando todos a queimarem vivos lá dentro. Depois de um caos frenético, o que resta é apenas uma garota cambaleando em direção ao espectador. Sua face está perplexa e corrompida pelo sofrimento, tem os braços abertos clamando por socorro e as pernas ensanguentadas devido ao estupro coletivo que sofreu. Sendo praticamente uma quebra da quarta parede, seu olhar dói. E o espectador, sentado no sofá, só pode remoer aquela cena.
Talvez a mais lembrada, a cena final é o mais próximo da vingança que Florya conseguirá. O garoto atira num retrato de Hitler enquanto filmagens documentais da época são passadas de trás para frente, como se balear a foto do Führer fosse suficiente para fazer a história voltar no tempo, anulando toda a desgraça que o líder nazista proporcionou. Mas, ao mesmo tempo, Klimov nos lembra de que isso é impossível, ao revezar essas cenas com o rosto do jovem, que envelhece a cada tiro. E, no último instante, o agora velho Florya levanta seus olhos e nos observa. Não há como voltar no tempo, não há como fugir de toda essa dor.
Grande obra...comentário bem detalhado. A cena do retrato que citou é minha preferida....me ganhou de vez ali.
A cena do retrato é a cereja do bolo em meio a tantas outras. São tantas cenas impactantes que eu não consigo me decidir sobre a minha favorita.
Belíssima crítica. Essa cena do retrato é a melhor mesmo.