Ele deixa seus filhos na escola e, mesmo antes de sair da porta da mesma, da uma carreirada num pouco de cocaína que guardava em seu bolso, provavelmente roubada numa das muitas abordagens feitas todo santo dia. Assim Ferrara apresenta seu protagonista, mas, distante, sua câmera não o julga em momento algum, apenas o acompanha em sua descida pessoal à seu próprio purgatório. O Tenente é a sua cidade, ele à respira para o bem e para o mal. Ele paga seus impostos, ele protege, mas ele também mente, ele rouba, é um ser humano falho como todos nós. Mas há um porém - ele já atingiu tamanha auto-consciência de quem ele é, e de que seus atos acarretarão na sua destruição (seja ela física ou psicologica), que nada mais o impede de ir cada vez mais fundo num poço que ele mesmo cavou: sua vida.
O estupro da freira serve como uma espécie de metáfora para a profanação de tudo que há de mais sagrado na vida, e que o Tenente se depara finalmente - há no mundo uma maldade enraizada de maneira tão profunda que talvez nem Deus compreenda (a freira deixa claro que não). Mas ele, já desnorteado, tenta desvendar, em vão, não o porque dos atos em si, mas o sentido daquilo tudo, pois parece-lhe dada essa missão: ajudar a pobre freira e encontrar seu próprio caminho dentro de si. A câmera o persegue à todo instante. Madrugada adentro o seguimos, bebemos, se drogamos e sentimos pena de nós mesmos junto dele, e na embriaguez o reflexo de nossa existência vazia nos mostra o quão somos pequenos diante de tudo, os nos apequenamos propositalmente para diminuir o julgamento dos outros perante nós.
Zoe Lund emerge como um espécie de anjo do pecado. Ela está para o Tenente, como Walken está para Lily Taylor em Addiction. "Extasiado", ele surge em sua porta como um vampiro sedento por sangue, e Zoe, a própria, não a personagem, solta o que pra mim, é mais simbólica das poucas falas do filme: "Os vampiros tem sorte. Se alimentam dos outros. Nós temos que nos consumir". Eles cumprem seu ritual diário, se consomem, se destroem, e o prazer momentâneo suga o pouco da dignidade que ambos já nem sabem se tem. Ferrara deixa a câmera passear cuidadosamente. Ele não julga.
Mas a dúvida maior do Tenente e o cerne do filme é a fé - ou o porque acreditar? Ele questiona o porque de ser misericordioso com tamanha crueldade, e a freira rebate com um "se eu não amá-los, quem irá amar?". Ele, incrédulo, parece clamar por alguma luz, um norte, pois o "mundo real" o blindou de tal forma que tal afirmação soa patética, e nada verossímil diante de uma profanação sagrada, de um estupro. Ferrara não economiza no imagético - Cristo grita na cruz, o Tenente grita dentro de si mesmo, de maneira assustadora, e o que vemos no encontro é um misto de fé e da falta dela, de uma admiração distante, mas que busca um entendimento "físico", pois para o Tenente, Deus, Jesus, o qualquer que seja, deve descer nas ruas de NY e viver o que ele viveu, sentir o que ele sentiu, para, enfim, poder julgá-lo de maneira justa.
Falar de Bad Liutenent é falar de Ferrara e Keitel, é relembrar o que foi o cinema independente americano dos anos 90 - uma equipe de 20 pessoas com equipamento limitado, cenários improvisados e orçamento mais ainda. É falar de Ferrara invadindo uma balada com 10 mil pessoas e uma câmera, é falar de Zoe Lund, que, sem pudor algum, se matava em frente a câmera e transmitia de forma cruel uma visceralidade que talvez jamais tenha sido alcançada. Mas falar de Bad Liutenent é principalmente, falar de Harvey Keitel. Ele não incorpora um personagem, ele simplesmente o vive. Seu olhar não indulgente, sua persona enigmática, seu chôro desesperado, pra dentro, quase que numa forma de se punir. É fantastico. É uma catarse artística em 100 minutos diante dos nossos olhos. Ver um ator desabrochar de forma tão crivel, se entregar de maneira tão exaustiva em aparentar que seu corpo e sua alma estão ali, ele está entregue. E o Diretor o encoraja a ir mais fundo. Isso é cinema. Que Keitel viva para sempre.
E falar da Direção de Bad Liutenent é citar o cinema anti-gênero de Ferrara. Que transforma todos gêneros num só, ou nenhum em todos. Ele não segue o roteiro à risca, ele deixa o ator fazer o que quer (a cena do carro, pasmem, é uma improvisação de Keitel), ele filma o infilmável (quem em sã consciência filma uma agulha em close pra vender pra americano ver?), enfim - é a própria visceralidade em forma de autor. Como bem disse um crítico na época do lançamento do filme: -"Ele não tem grandes pretensões, lhe dê uma câmera e ele lhe dará um grande filme. Não precisa ser uma grande história, mas tenho certeza que será um grande filme".
Ao final, o Tenente de Ferrara "prega" quase que despropositalmente para dois criminosos, como se tentasse salvar suas almas daquilo que pra ele já não se tem mais salvação: a consciência. Ele foi consumido por si mesmo, pouco a pouco, e já não existe fora dali. Seu destino foi traçado e ele não deseja fugir dele - "desvio de balas desde os 14 anos, eu sou imortal. Sou católico". Aos olhos de Deus talvez sua redenção tenha chegado de alguma forma, na Terra seu sangue contará sua história.
Belo texto, Nilmar..
Belo Nilmar, texto..
Valeu juvena.
Belo Nilmãe, darlan.