"Os vampiros têm sorte, eles podem alimentar-se dos outros. Nós precisamos nos alimentar de nós mesmos. (...) precisamos comer tudo de nós mesmos para que não reste nada além do apetite.
Vício Frenético não é o melhor filme de Abel Ferrara - apesar de estar ali nas cabeças -, mas é, provavelmente, o filme-símbolo de seu cinema. Não a toa duas cenas aqui são peças primordiais para entender o que são e o que move seus personagens ao longo de sua injustiçada filmografia. Na primeira delas, a personagem de Zoë Lund - que co-escreveu o filme com Ferrara e já disse ter aqui muito do lado pessoal dela, uma quase personagem do cineasta fora das telas - diz em off o monólogo sobre vampiros em que o trecho que abre esse texto está inserido e decifra muito do Tenente interpretado por um selvagem Harvey Keitel (que momento o do ator nesse filme!), enquanto ele se injeta heroína - a droga que Ferra já disse ser o "elixir da vida"¹ de Lund, morta aos 37 anos por seu vicio também em coca. O protagonista de Vício Frenético, assim como os personagens de Ferrara em geral se auto consomem até só restar o apetite, nem eles mais existem. Daí que pense um pouco: quantos personagens de Ferrara ao iniciarem o caminho em que se consomem com suas escolhas chegam vivos ao final de suas jornadas? E porque eles não percebem estarem se consumindo em direção a morte ou se percebem, porque não se detém? Aí entra a segunda cena-chave do filme do "mau policial".
Uma freira (Frankie Thorn) é estuprada - ecos de Sedução e Vingança se fazem ouvir por toda a tela - por dois homens menores de idade que são liberados, o "mau policial" se oferece para "fazer justiça" apenas para ouvir da moça que ela já perdoou seus algozes. E ele não pode lidar com essa informação. Como ela pode absolvê-los depois daquilo? E se ela conseguiu desculpar os jovens que a estupraram, porque ele não consegue perdoar a si próprio? Porque é um personagem ferrariano. E eles nunca conseguem lidar com eles mesmos. Daí que enquanto os personagens de um Tarantino ou um Scorsese - dois cineastas geniais também, vale apontar - extraem prazer das drogas e podem ser filmados, na falta de termo melhor, com certo "glamour", os personagens de Ferrara cheiram, injetam e fumam para se punir. E a cada dose tudo só piora - na primeira cheirada o Tenente está bem, desperto e "apenas" com alguns tiques de limpar o nariz; no momento do monólogo de Lund, já se tornou um zumbi, uma casca de si mesmo -, chega-se mais perto do objetivo. Sendo assim, garanto que basta uma cena de uso de drogas de um filme do cineasta para fazer propaganda efetiva antinarcóticos em escolas - não que essa seja a intenção do cineasta que estava ele próprio drogado a altura da maioria de seus grandes filmes. Porque é tudo tão cru, sujo, feio e dolorido que duvido alguém querer isso para si - aliás, a experiência de assistir Ferrara é tão pesada que se cria um paradoxo: você quer embarcar no restante da filmografia do cineasta, mas é uma tarefa quase impossível (para não dizer quase um desperdício) assistir dois de seus filmes em sequência.
“Suas vidas não valem nada nessa cidade”. É das últimas coisas que ouvimos aqui, saindo da boca do protagonista para os ouvidos dos jovens que estupraram a freira. Existe uma ideia de redenção ou tentativa de redenção ao menos ao final de Vício Frenético, mas, a verdade, é que redenção não é algo possível no universo de Abel Ferrara. Daí que essa frase poderia ser para qualquer um de seus personagens. Vale lembrar, aliás, que a cidade-fetiche do cineasta é a mesma Nova York de Scorsese, daí que não se torna difícil vir a mente a ideia de que, se caminhassem os personagens de ambos pelos mesmos becos, se matariam - os personagens de Ferrara são, aliás, a "escória" tão odiada pelo Travis Bickle de Robert DeNiro em Taxi Driver.
Por falar da relação de Ferrara e Nova York, no cinema do cineasta as ações dos personagens moldam o meio ou o meio molda as ações deles? Pode existir inocência no universo ferrariano? Aparentemente, não. Afinal, a freira, das poucas inocentes em Vício Frenético (inocente não por julgamento da câmera, mas pelo que se imagina como "moral") vê a própria inocência como culpa - "eles não me amaram, mas eu deveria tê-los amado.", diz ao "mau policial", que logo alcançaria seu destino e se consumiria por completo até restar, ao subir dos créditos, só o apetite e o som daquele choro em forma de grunhido pra dentro que impregnará nossos ouvidos por um bom tempo.
1- https://www.thefix.com/content/abel-ferrara-dsk-addiction7476
EU SOU FABULOSO EM TUDO QUE FAÇO.
wik, DARS.
wik, Eduardo
SE UM TEXTO DO PEPE TEM MAIS DE DUAS HORAS E NÃO TEM ESTRELA, JÁ SEI QUE É SUPERFICIAL, MASSANTE, VERBORRÁGICO E QUE UM SHOW DE STAND UP DO SERGIO MALANDRO PROFERIDO EM BILU TETÉIA É MELHOR.
Eita porra, errei, como faz pra apagar?