Pouco se escreve sobre os recentes filmes de Terrence Malick, mas menos ainda se escreve com humildade. Há um abismo entre o tempo e o trabalho gasto do diretor texano e a vontade em entender seus filmes. Mas antes que isso pareça demasiado religioso, devido a minha admiração pela obra construída por este grande mestre, é preciso saber: Voyage of Time não chegou arrasando nos cinemas brasileiros, não há lindas estórias de amor (ao menos não da forma como se espera normalmente) e pior, como já salientado, não há sequer esforço em produzir uma crítica. Nem nos jornais, em estilo de vídeo e nem escrito na internet, nada. É um vácuo, enquanto obras que já estão no seu quinto capítulo ganham ao menos críticas desfavoráveis, da mesma forma que é evidente que estão com a qualidade cada vez pior, outras, com indiscutível qualidade artística são jogadas para escanteio. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos da América esta fórmula aqui apresentada se repete insistentemente. Certo, pode não haver um esforço de Malick para divulgar seus filmes, mas isso explica por ele se evidentemente uma pessoa fechada, o que necessariamente explicaria os críticos não possuírem um esforço maior em conhecê-la? Note-se que a opinião do aqui autor ainda não foi identificada (eu não dissertei sobre a qualidade do filme, que tem um apelo visual inegável), e que eu sequer pedi que falassem bem do filme, mas que ao menos falassem. Porque este silêncio é demasiado ensurdecedor, faz pensar que é melhor falar da saga Transformers (ainda que para denegrir) por seu apelo de público e fama que isso possa, positivamente ou negativamente dar, do que de fato ser um crítico honesto com seu trabalho e suas convicções. Sabe-se também que o cineasta norte-americano não se importa muito com a recepção de seus filmes, seu último drama De Canção em Canção (Song to Song, 2017) arrecadou apenas $973,255 nos cinemas estado-unidenses. Enfim...
Encarada como uma jornada filosófica através do espaço-tempo, Voyage of Time foi modelado e ficou de canto algumas décadas para chegar ao que é hoje, planejado primeiramente como um filme chamado Q, ainda na década de 1970, seu plano inicial foi colocado em prática com o bem sucedido A Árvore da Vida (The Tree of Life, 2011) e muito provavelmente mais algum projeto sobre a formação do planeta e o nascimento da vida na Terra venham a aparecer. É importante frisar também que essa versão analisada é a de 88 minutos, com a narração doce da atriz australiana Cate Blanchett - e não a versão com menor duração narrada por Brad Pitt.
Ainda diferente do que poderia-se imaginar, Terrence Malick não parte de uma jornada hindu, cristã, islâmica ou quaisquer fosse para representar a criação do universo - ele sempre é apontado como um cineasta religioso por grande parte da crítica especializada. Porém, partindo muito mais de uma proposta científica darwiniana e não teológica, nem mesmo das teologias mais antigas. Sua abordagem, de visualizar claramente e diretamente, não se insere em algum discurso a não ser o da luta pela sobrevivência, sejam de átomos ou de células, até peixes e tubarões. Ainda que por vezes o mito grego de Gaia (Γαία) pareça reluzente: Urano, cortado por Cronos com uma arma feita do próprio peito de Gaía, acabaria desmembrando-o, assim separariam-se o Céu e a Terra, lançado seus testículos ao mar fecundariam-se e então nasceriam ninfas e gigantes. A busca por uma explicação do todo, do Cosmos, é tão antiga quanto a nossa própria existência.
Mas afinal, qual seria a diferença entre este documentário e os outros diversos produzidos por redes televisivas que inundam canais fechados feitos pelo mundo afora sobre geologia, pré-história e astronomia? Não há a intenção de ensinar categoricamente como um conteúdo de colégio (isso não é ruim, só que aqui não é a proposta, embora isso possa ser feito com uma pesquisa profunda, porque há animais aqui nunca retratados antes). A produção tem até mesmo a colaboração do National Geographic, mas o seu fundamento não é simplesmente fazer um documentário narrando fato por fato numa linha temporal até a chegada dos nossos dias - é uma abordagem mais profunda. Não somente profunda, filosófica. É um ode a natureza. Não, não que Voyage of Time despreze David Attenborough, o famoso naturalista britânico que praticamente abrangeu diversos tipos de biomas possíveis da qual o planeta viveu, e que na qual assistir as suas séries é como ter um outro contato com o que é a vida por aqui. Malick preza mais pela contemplação, pela fotografia saborosa, onde cada plano parece milimetricamente pensado para arrebatar quem o vê, a ponto de emergir. E aí está: a diferença deste para outros documentários do gênero está na sua imersão, imersão na imagem, imersão na própria relação que temos com a vida. Até posso dizer que é um gênero novo (?), não lembro de algum outro documentário-naturalista-astronômico-filosófico! É realmente uma grande sopa de ideias e biomas para menos de 1 hora e 30 minutos. O que levou a alguns críticos reclamarem da falta de uma cronologia na passagem do filme, algumas eras durariam menos do que outras, mas aí parte da subjetividade do que o diretor quer mostrar. E obviamente ninguém quer passar mais de 4 bilhões de anos na frente da tela vendo tudo acontecer tal como foi..
Mas tudo está lá (talvez não a origem da Lua, ou simplesmente foi desatenção minha mesmo), desde as primeiras explosões do universo, a condensação do nosso sistema solar e todas as eras: o Hadeano cobre um bom tempo em cena, onde lindas cenas de magma e pedras derretidas colorem a tela, em determinado momento um mar de fogo é captado com precisão, em uma das cenas mais lindas que eu lembro de ter visto em algum filme. No Arqueano, há cerca de um pouco menos que 4 bilhões de anos, os oceanos começam a surgir e a superfície terrestre começa a dar uma esfriada, nele, uma bela cena do magma quente esfriando em contato com a água fria parece dar vida a algo inanimado e potencialmente perigoso a vida. Dentro do Farenozoico, finalmente as primeiras criaturas, como os artrópodes (uma espécie de carangueijo pré-histórico do fundo do mar) conhecidos como Trilobitas - é onde tem-se a explosão da vida, com o surgimento das primeiras aranhas, tubarões e determinados tipos de plantas. Curiosamente, diferente de em Árvore da Vida, os dinossauros ocupam um espaço relativamente pequeno tamanho a sua fama e duração de existência no planeta. Isso não fez com que a cena do meteoro que dá gradualmente a abertura do reinado mamífero na Terra fosse deixada de lado, sua beleza é mórbidamente linda e até mesmo um pouco assustadora. Já na Era Cenozoica, a Era em que ainda vivemos e que começou há cerca de 65 milhões de anos, lindos blocos de gelo preenchem a tela com um prata gélido melancólico.
Desde o aparecimento das primeiras raças humanas (e depois um salto ao início da civilização moderna), o grande questionamento apontado pela narração certamente é: "Afinal, o que contemplamos quando contemplamos você?", é uma pergunta retórica e aparentemente sem resposta, mas que depois de tanta beleza, não parece definir-se apenas como algum tipo de beleza, é mais além. E é exatamente essa profundeza filosófica (ou simplesmente de abordagem da vida como um todo) louvável de encontrar-se em um filme. Outro questionamento que parece ter confundido muito as pessoas foi as imagens pré-humanas intercaladas com cenas de mendigos e procissões religiosas, provavelmente da Índia, o que não deixa nunca de ser um ponto fora da curva e uma introspecção inerente ao diretor; entretanto, há algo mais crítico do que fazer um filme contado bilhões de anos de história e começar justamente com aqueles renegados pelo nosso sistema social rastejando pelo chão? Não é belo, mas é bastante, bastante inquietante. Há um hiato entre bilhões de anos de evolução, vida e também morte até chegar a um sistema de "vida inteligente" onde simplesmente não há lugar para todos. E de repente somos tão piores que aqueles leões que despedaçam uma infeliz zebra por simples instinto de sobrevivência. Como disse amargamente o filósofo húngaro Imre Kertész: "Deus criou nós, nós criamos Auschwitz".
Mas ainda assim não é um filme de atores, não há encenação e discursos decorados, somente uma contemplação da vida. Poderia-se fazer diferente? Poderia, o menor dos impérios já criados pelo homem poderia ocupar o mesmo espaço de tempo em tela, mas lembrando que trata-se do macro e não do micro. A câmera do renomado fotógrafo Paul Atkins não tem a mesma obsessão pelo encoberto como havia por Jacques-Yves Cousteau e Louis Malle em 1955, quando fizeram O Mundo do Silêncio (Le Monde du Silence), um dos primeiros documentários a ser realmente bem premiado pelo mundo. No registro francês, a câmera era um olho e o homem era um desbravador; aqui a câmera é o próprio tempo e o homem uma vítima das transformações geográficas e astronômicas produzidas por algo maior que ele, estando sujeito a conjunturas imperceptíveis a uma simples vida com duração menor do que uma centena de anos, onde poucas mudanças são percebidas. No entanto, a câmera contemplativa que desliza para um lado e para o outro registra sem nenhuma intenção de julgar e a imersão depende da capacidade de aderir-se a ela, o resto está lá.
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