“Eu... Eu preciso saber quem ele é. Eu... Eu preciso estar lá, eu preciso olhar nos olhos dele e eu preciso saber que é ele.”
Se uma pessoa conserva a menor dúvida sobre o talento de David Fincher, um dos melhores cineastas da Hollywood atual, basta colocar os olhos no que talvez seja seu projeto mais injustiçado, esse sensacional Zodíaco, para essa dúvida se dissipar. Injustiçado por que é um filme irrepreensível, vendido pelo estúdio de maneira equivocada – “a volta do diretor de Se7en – Os Sete Crimes Capitais aos filmes de serial killer” -, o que ajudou na decepção do público que tornou o filme um fracasso de bilheteria e, por que não, da critica, que não se entusiasmou com a produção.
Esqueça Se7en, Zodíaco não é sobre a caçada a um matador em série, mas sobre os efeitos dessa caçada em três homens bastante distintos entre si que em comum possuem a obsessão pelo sujeito que aterrorizou São Francisco – e cidades próximas – a partir de 1969 ao assassinar diversas pessoas e enviar cartas ao San Francisco Chronicle (e outros jornais de grande circulação) com códigos que desafiavam a policia a descobrir sua identidade e capturá-lo. O roteiro intricado de James Vanderbilt cobre as três décadas que se seguem ao primeiro crime do serial killer e toda a dedicação de Paul Avery (Robert Downey Jr.), repórter criminal do Chronicle, David Toschi (Mark Ruffalo), investigador responsável pelo caso, e Robert Graysmith (Jake Gyllenhaal), cartunista do Chronicle que escreveria o livro mais famoso sobre o Zodíaco, no qual aliás o filme de Fincher foi baseado.
Surge então um filme onde Fincher pode exercer sua já conhecida veia perfeccionista – que, inclusive, já o fez ser comparado à Stanley Kubrick -, criando uma relação metalingüística com a obsessão de seus personagens aos detalhes. E são os detalhes que formam Zodíaco, tornando-o uma narrativa complexa, onde se uma informação for descuidada pode comprometer o restante do filme para o espectador, afinal são incontáveis as pistas, locais, datas, suspeitos e objetos que assumem importância ao longo das duas horas e meia da obra, resultando em um dos mais fiéis retratos das complicações de uma investigação como essa – com o agravante da época em que se passa a história, onde mesmo um aparelho de fax era artigo de luxo para uma delegacia -, trazendo também as dificuldades em encontrar pistas, conseguir um mandado de busca, localizar um suspeito, e mesmo registrar e transmitir informações – com crimes em várias cidades, oficiais precisavam colaborar entre si -, o que resulta em oficiais interrogando um suspeito que outra jurisdição já havia contatado e mesmo falhas cruciais, como a falta de um importante dado em um relatório oficial. Dessa forma, não é difícil imaginar a sala do personagem de Gyllenhaal, abarrotada de anotações e recortes de jornais sobre o Zodíaco – uma bela criação da equipe de direção de arte, aliás -, como uma recriação da sala de produção do próprio Fincher.
Esse realismo, aliás, em dado momento se contrapõe ao retrato policial habitual no cinema, em uma dos melhores momentos do filme, quando Toschi se retira de uma sessão de cinema que exibe Perseguidor Implacável, baseado no caso do Zodíaco, e ao ser informado sobre o final do filme, que traz a morte do assassino, brinca com uma ponta de lamentação “e ele nem precisou montar uma investigação, não é?”. Por que ao contrário de um policial durão de cinema – e é interessante notar que o próprio Toschi foi usado como inspiração para o Bullit de Steve McQueen -, um oficial real (ou a dramatização realista de um, no caso) não pode fazer justiça baseado apenas em sua certeza, sem provar a culpa de um suspeito, resultando assim em momentos particularmente dolorosos em que um sujeito parece disparar o sensor interno de “culpado” no personagem de Ruffalo, mas nenhuma prova concreta o incrimina.
Cobrindo, como já dito, 30 nos de uma investigação que jamais encontrou seu final, já que o principal suspeito – e ao que tudo indica, culpado – morreu pouco antes de ser acusado judicialmente – e mesmo os testes que se seguiram não foram o suficiente para solucionar o caso, que permanece aberto em algumas cidades e fechado sem solução em outras -, Zodíaco é um filme que nas mãos erradas estaria destinado ao fracasso artístico, mas felizmente, David Fincher é o nome escrito na cadeira de diretor. O cuidado e o domínio da narrativa do cineasta são notáveis. Repare como o diretor muda os atores que interpretam o Zodíaco em cada crime cometido pelo assassino, nos deixando tão perdidos quanto os responsáveis pela investigação, recriando até mesmo a falta de certeza da responsabilidade do criminoso por traz dos fatos, afinal não foram poucas as vezes que o Zodíaco assumiu aos jornais crimes que não cometeu de olho na publicidade. Além disso, o vicio de Paul Avery em bebidas alcoólicas, que o destruiria física e psicologicamente ao longo dos anos, já é indicado por Fincher desde as primeiras aparições do sujeito. Da mesma forma, é impressionante a habilidade de Fincher e do montador Angus Wall em alternar o foco entre os protagonistas e retratar as freqüentes passagens de tempo da narrativa, como na sequencia em que anos se passam através da timelapse que retrata a construção de um prédio no período. Além disso, o cineasta revela mais uma vez ser bom em conduzir o suspense da narrativa, tanto nas sequencias de assassinato, como num momento particularmente tenso que se passa em um porão. E se o talento do diretor para posicionar sua câmera em locais inusitados continua apurado – basta ver o embasbacante plano captado no topo da ponte Golden Gate -, o mesmo pode ser dito sobre a condução do seu elenco.
Pouco antes de seu “ressurgimento definitivo” com o papel-título de Homem de Ferro e o excelente desempenho em Trovão Tropical, Robert Downey Jr. já mostrava aqui os sinais de uma volta por cima, com um personagem que traz muito do próprio ator, indo de um jornalista respeitado por todos à um rascunho de si, afundado em bebidas e mal conseguindo manter-se são. Mark Ruffalo confere seriedade ao seu papel, tornando-o um sujeito confiante/confiável ao assumir a postura de um homem para quem um único caso não solucionado é motivo para não dormir à noite. Além disso, Ruffalo se sai particularmente bem ao evocar todo o desgosto de Toschi com a burocracia que o rodeia, já que para ele seria muito mais fácil simplesmente poder prender seu suspeito. E temos o excelente e subestimado Jake Gyllenhaal em uma de suas melhores performances, encarnando com talento a postura introspectiva de um sujeito que mal encara seu interlocutor e sempre parece falar sem confiança, se metamorfoseando durante sua jornada de obsessão em um homem de decidido e confiante em si mesmo e suas convicções, culminando na bela cena em que o personagem finalmente encontra-se cara a cara com o homem que julga ser o Zodíaco, onde sem palavras comunica ao espectador tudo que precisa.
E é nesse momento em que Graysmith realiza o que tanto buscava em sua jornada obsessiva – olhar para o resultado de seu esforço, um suspeito que sabia ser culpado, ainda que isso não significasse nada concreto, apenas uma paz de espírito subjetiva, afinal, ele não podia provar nada, o assassino ficaria solto ainda – que mais uma vez o paralelo com o próprio Fincher e sua obsessão perfeccionista parece fazer sentido: para Fincher basta olhar seu resultado e saber que fez seu melhor. E aqui, mais uma vez, ele fez.
Belo texto, um dos meus favoritos do Fincher!
Valeu, Chico.
Pra mim quase todos do Fincher são meus favoritos dele hahaha
Ótimo texto. O Quarto do Pânico é bom. Não consigo é gostar de A Rede Social....
Valeu, Cristian O/
Assisti A Rede Social uma única vez, na época do lançamento, planejo rever, mas lembro de ter gostado bastante.