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Críticas

Cineplayers

O terror da santidade.

9,0

À primeira vista, 14 Estações de Maria é um caso de filme que pode escapar de definições simples de bom ou ruim. O tema religioso é tão delicado e o estilo do diretor Dietrich Brüggemann tão ousado que é fácil se conformar com o benefício da dúvida. Pode ser, afinal, um clássico caso de “em cima do muro”, algo nem ácido como se pode inferir nem fundamentalista como se pode temer. Foi certamente a primeira impressão que tive, assim que extinta a ilusão, brevíssima, de que o drama era um rebento do fanatismo cristão. Assim, a tendência é ver como aberta a interpretações a trajetória da jovem Maria (Lea van Acken), que precisa equilibrar os ensinamentos de sua vertente tradicional do catolicismo, seus temidos pecados, a opressão de sua mãe (Franziska Weisz) e as tentações do sexo oposto.

Por outro lado, essa ideia já não se sustenta tão bem na primeira “estação”, um dos catorze estágios da Via Crúcis de Jesus. Esta narrativa bíblica em particular, o diretor e sua irmã, Anna Brüggemann, usam para traçar no roteiro um paralelo com a história de Maria. A sequência que abre o longa-metragem representa o momento em que o Cristo é condenado à Morte, uma analogia aparentemente drástica para o que a tela de fato mostra: o jovem e belo padre Weber (Florian Stetter) repassa seus últimos ensinamentos aos adolescentes que serão crismados em sua igreja. Mas desde o início há algo perturbador nesse clérigo tão aprazível, fixado de forma central num enquadramento imóvel enquanto discursa sobre preparar seus alunos como “guerreiros” para uma batalha santa pelos corações de todos os não-convertidos. Arrepiante. Talvez subjetivo, mas arrepiante.

Não é menos importante que, no momento do crisma em si, fique claro que a instituição de fato vê os jovens como combatentes: cada um recebe um tapinha simbólico no rosto, assim como os guerreiros medievais ao se tornarem “cavaleiros” (knights). Mas a sequência inicial já comunica certa tensão e prepara para algo muito distante de um filme edificante sobre as bênçãos do Deus cristão, seja pelo fato de a tomada única ser rigidamente estática e construída como a Última Ceia de Da Vinci ou pela escolha de palavras e ensinamentos do padre àquelas crianças que estão se preparando para adentrar a vida adulta através de um sacramento. As “estações” são todas compostas de planos ininterruptos, quase todos imóveis, e cada cena é uma construção dramática tão tensa e focada nos tormentos de Maria que é difícil enxergar algum enaltecimento da fé. E quem espera uma catarse pode muito bem encontrá-la, mas é difícil ver a conclusão da trama de tal modo.

É a segunda estação (Jesus carrega a cruz nas costas) que introduz o mote do drama, como um germe, ao explicitar as interpretações confusas que a protagonista retira das lições religiosas. Buscando se despir dos bens terrenos, ela abdica de parte de suas vestes apesar do clima frio, e, querendo evitar a vaidade, causa uma celeuma familiar por negar sua presença em uma fotografia. O roteiro é particularmente feliz ao contrapor as convicções pessoais de Maria, embasadas que sejam em sua doutrina, à opressão da mãe, tão ferrenha ou mais quanto à religião. Mais interessante ainda é como a grosseira soberba da mulher em relação aos que não professam sua crença se reflete na filha, embora de forma mais branda, quando têm início seus delírios de santidade. No mínimo, essa história mostra o tipo de engodo que pode decorrer de ensinamentos religiosos para jovens.

Porém, o todo do filme passa uma impressão muito mais forte. É excruciante acompanhar as escolhas da personagem-título, suas consequências e as reações das pessoas ao seu redor. O fato é que a garota toma atitudes controversas mesmo para outros seguidores de sua fé, mas é nos princípios que tanto lhe foram passados que ela fundamenta seu plano, tão repleto bem intencionado, de ajudar o irmãozinho. Pode-se dizer até que seus intuitos milagreiros eventualmente se tornam realidade, mas o resultado em questão seria bastante coerente como acontecimento mundano pela gravidade da situação e pela relação tão forte que ela tinha com o irmão. Em suma, a Via Crúcis de Maria soa menos como uma modernização de Ben-Hur e mais como uma adaptação realista de certas ideias do terror francês Mártires (Martyrs). São dois filmes que exploram as facetas mais aterrorizantes do sacrifício e da beatificação vistas através de olhos fundamentalistas.

A sequência final certamente reforça os poréns que rodeiam a devoção extrema e as boas intenções dos ensinamentos religiosos, mas também pode ser vista como o contrário. Com um dos dois únicos movimentos de câmera do filme, dirigido da terra ao céu, a estação final questiona a divindade da doutrina que guiou Maria. Por outro lado, pode-se argumentar que a cena cimenta e vangloria os esforços da menina, caso todo o filme seja encarado como uma pura analogia ao destino de Jesus – incluindo aí o repúdio de tantos a seus ideais e a crucificação como um ato de salvação para outros. Definitivamente é uma possibilidade e, vá lá, talvez até a intenção dos realizadores, mas o fato é que eu não recomendaria este filme para um católico fervoroso. E talvez indicasse apenas para católicos realmente críticos em relação à fé cristã.

Ainda sobre os intentos dos irmãos Brüggemann, este é um excelente caso para a discussão sobre a “intenção do autor” e a “intenção da obra”, como Eco a formulou e elaborou. Sem conhecer muito da obra e da vida dos cineastas, seria possível que 14 Estações de Maria tenha sido concebido como um drama religioso de fato, e mesmo assim acabar passando a ideia de um quase terror sobre as tragédias rotineiras de famílias fundamentalistas. Mesmo adotando uma interpretação específica, não é de se espantar que o longa tenha ganhado dois prêmios, incluindo o Urso de Prata de melhor roteiro, no último Festival de Berlim.

É verdade que as semelhanças criadas entre a Via Sacra de Jesus Cristo e a vida da personagem principal às vezes perdem a fluidez e ressaltam como tudo é construído meticulosamente com aquela ideia em mente. Mas é na direção que isso se faz sentir com mais força, visto que os enquadramentos e a mise en scène são tão restritos. Ao mesmo tempo, essa simplicidade das analogias e esse rigor cênico configuram certa frivolidade estilística, o que alimenta a argumentação de que não se trata de uma parábola chapa-branca e, talvez, até dê mais profundidade ao filme. Afinal, que libelo religioso se valeria de recursos tão escancarados e auto-indulgentes para comunicar sua mensagem?

Eis uma das sessões mais intrigantes para se buscar agora nos cinemas.

Comentários (1)

Gustavo Hackaq | quinta-feira, 16 de Abril de 2015 - 13:08

Ma-ra-vi-lho-so, já se encontra na minha lista de melhores do ano [cuteeye1]

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