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Críticas

Cineplayers

Exacerbando as situações, Julie Delpy constrói uma crônica sobre as variações de valores de uma sociedade à outra, ou das particularidades na visão de mundo de cada um.

7,5

Há muitos anos vemos Julie Delpy na tela do cinema, uma atriz européia que já participou de várias produções norte-americanas, e dizendo isso não quero parecer redundante já que essa é uma informação muito conhecida sobre a carreira dela, mas apenas mostrar que essa experiência lhe deu segurança suficiente para escrever e dirigir uma história como a de 2 Dias em Paris. Para quem não sabe essa é a primeira vez que Julie dirige um filme, mas ela já escreveu o roteiro de Depois do Anoitecer em parceria com Ethan Hawke e Richard Linklater. E falando nessa parceria, esse foi um filme que me agradou muito, tanto pelo ritmo dado à história quanto pelas interpretações, mas também pelos diálogos que fluíam como boas conversas em que o papo vai de problemas globais a historinhas da vida cotidiana.

Em 2007 tivemos também a estréia de Hawke na direção com Um Amor Jovem, e após assistir 2 Dias em Paris a impressão que tive foi a de que Depois do Anoitecer foi realmente construído numa mistura entre essas três sensibilidades, Linklater, Delpy e Hawke, já que as primeiras produções individuais dos dois atores trouxeram em si – cada uma a sua maneira – algumas características encontradas nesse projeto conjunto, que na época me passou a impressão de ser um teste de laboratório a respeito de uma idéia ainda em construção, e quem sabe mesmo não foi um aquecimento para Julie e Ethan?

A estrutura da narrativa é simples: todos os conflitos acabam surgindo devido ao choque de posturas entre Marion (Julie Delpy) uma fotógrafa francesa que vive em Nova Iorque, e seu namorado Jack (Adam Goldberg), um americano que é designer de interiores. E o filme é tão "sério" nesse embate travado entre os dois personagens, que logo na primeira aparição do casal isso sutilmente se evidencia através da composição da cena, quando vemos ambos deitados e vestindo camisetas pretas, sendo que a dela traz o desenho de um revólver amarelo apontado na direção do namorado, uma metáfora para o que veremos depois: uma disputa velada, menos para que eles se entendam do que para que um consiga trazer o outro para dentro de seu mundo.

Marion é a narradora e dessa vez eles estão no terreno dela, já que os dois moram juntos em Nova Iorque, o terreno de Jack. É a cidade de Paris, onde moram seus pais e amigos e onde ela conhece a língua, as comidas e as ruas, ou seja, um lugar onde ela entende como as coisas funcionam, os processos, os valores, o humor. E onde Jack está sensivelmente deslocado e inseguro e por não saber falar francês acaba desconfiado que algo possa ser falado a seu respeito, mas não tem a capacidade de compreender o que seria.

A metáfora que Delpy utiliza para evidenciar as diferentes maneiras como cada pessoa reconhece e estabelece suas relações com o mundo vem do fato da personagem ter um problema na retina, como pequenos buracos, que modificam a forma como ela enxerga as coisas. Um problema que foi detectado quando ela ainda era uma criança, sendo confundido por muitos com um tipo de retardamento, e ao que sua mãe Anna (Marie Pillet) tratou lhe dando de presente uma câmera Polaroid. Assim ela poderia continuar perdida na observação de coisas pequenas sem necessariamente ficar parada durante horas em frente àquilo, podendo levar consigo uma imagem e observá-la sempre que quisesse. E quando ela nos conta sobre esse problema, termina a narração dizendo: “Sim, todo mundo vê o mundo literalmente diferente”. E ao redor disso que a história gira.

O casal faz um tour pela Europa, incluindo todos os programas clássicos que ela como européia já sabia de cor e conhecia muito bem, mas que para Jack era uma novidade, e de certa forma, inconveniente já que nada parecia de acordo com seus padrões. E antes da volta para os EUA, eles passariam dois dias em Paris. E a história faz da relação dos dois um estereótipo da convivência entre duas pessoas com sensibilidades diferentes. E mesmo tendo como foco um relacionamento amoroso, traz à tona as confusões possíveis numa situação de choque entre culturas, ou seja, utiliza um casal para tratar de várias discussões maiores: política, costumes, manias e vícios presentes em todas as sociedades sem que se saiba necessariamente se há alguém mais certo ou mais errado, mas ainda admitindo que cada um tem suas razões para ser como é, e que mesmo sendo diferentes as pessoas podem encontrar formas de se entender.

O filme é cheio de "coisinhas interessantes", como as piadinhas que Delpy inclui sobre o que há de ruim em ser um francês, os imigrantes em Paris, o machismo e a liberação sexual que vem de muitas décadas atrás. Tem a história de que a mãe de Marion já tenha dormido com Jim Morrison e do seu pai (Albert  Delpy, pai da atriz/diretora) servindo coelho com cenouras para Jack.

Adam Goldberg parece tão bem nessa interpretação que não consegue passar desapercebido. Assim como o senhor Delpy rouba a cena em vários momentos e é sinceramente difícil saber se ele estava interpretando ou sendo apenas ele mesmo. Adam Jodorowsky, filho de Alejandro, aprece como Mathieu, um dos amigos de Marion e também agrada no papel. Assim como Daniel Brühl faz uma pontinha na pele de um personagem enigmático que dá conselhos a Jack sobre fast-foods e sobre amor.

Assim como disse de seu amigo Ethan Hawke, Julie Delpy não produziu o melhor filme de todos os tempos, mas foi muito competente na condução de sua história, merecendo uns créditos bônus pelo roteiro e os diálogos espertos e rápidos, estruturando a narrativa no momento presente já que fazia várias referências a discussões atuais, aproveitando para mostrar sua cultura até naquilo que ela menos gosta. O único escorregão foi o de inverter o papel e colocar o americano no papel de bobo, deixando para transformá-lo num personagem mais complexo só no final da trama.

Mas isso seguramente não desmerece o trabalho e graça do filme. Enfim, 2 Dias em Paris tem um ritmo muito agradável e é esperto e sensível, como Julie Delpy parece ser.

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