Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Como filmar sem riscos.

5,0
Em algum momento entre as curvas do roteiro de 22 July, Paul Greengrass perdeu a mão. O projeto tinha cara de Greengrass, cheiro de Greengrass, jeito de Greengrass e no fim das contas até foi assinado pelo próprio, ou talvez uma versão chapa branca do Greengrass, algo que o cineasta nunca tinha sido até então. De posse de longas do novo milênio não apenas instigantes, mas cruciais em gêneros distintos, o cineasta foi complementando um rico mosaico sobre a política, até irromper com ela rumo a um cinema de larga escala. De Domingo Sangrento até a série Bourne, passando por Voo United 93 e Zona Verde, o autor construiu sua cinematografia em torno da urgência, da pulsão histórica e de recriar uma linguagem para o cinema de espionagem através do 'real', para desembocar no absoluto irreal (será?); esse novo filme, produção da plataforma de streaming Netflix e concorrente do último festival de Veneza, é um claro passo atrás.

O filme é a segunda produção de 2018 a se debruçar sobre o massacre na ilha de Utoya na Noruega no início da década, que vitimou 70 jovens de classe média alta ('filhos da elite', como diz o terrorista ao ser indagado) e chocou o país; a outra produção estreia nos cinemas ainda esse ano, competiu em Berlim, é dirigida por Erik Poppe e tem muito mais méritos, embora menos pedigree. Enquanto no longa de Poppe - Utoya 22 de Julho - acompanhamos o massacre em tempo real exclusivamente, aqui o mesmo evento ocupa um máximo de 15 minutos de projeção, porque Greengrass resolve apostar numa estrutura para lá de convencional no ato de contar esse tipo de produção: elege uma família modelo para acompanhar antes, durante e pós-massacre, para que nossa empatia seja capturada pelo drama familiar, como se o assassinato de 70 jovens não fosse o suficiente para despertar humanidade, e em resumo, não acreditasse no seu próprio poder como realizador.

Além disso, Greengrass resolve acompanhar o processo de maneira mais ampla possível, indo até o julgamento do responsável pelas atrocidades daquele fatídico dia, movendo um outro personagem (o advogado que o próprio terrorista escolhe) para uma zona de discussão, talvez a única fatia do filme que promova interesse, ainda que nenhum desdobramento ali seja necessariamente novo ou original, apenas reside nele o brilho que falta ao resto da produção. São estranhas as decisões do autor, que sempre foi tão conciso e pertinente em seus temas mesmo quando abraçou o comercial em sua filmografia. Aqui, parece entregue a uma narrativa convencional e quase banal, tirando as circunstâncias que tornaram a tragédia tão incomum e dando a sua moldura um aspecto ordinário, e que não faz nenhum sentido a esse tipo de filme especificamente.

Pra completar o quadro estranho, o filme é uma produção toda ambientada na Noruega e conta com um elenco norueguês, então porque o filme tem aquela prática antiquada (e que sempre foi ruim) de todos falarem em inglês? Nos dias de hoje, numa produção globalizada bancada por uma plataforma de streaming, que estreará no mundo todo simultaneamente, prática a qual nem o diretor era adepto, isso só agrega má vontade a um produto que deveria ter uma moldura muito mais bem cuidada que essa, dando a impressão de preguiça e acomodação dos envolvidos, sem capricho. A forma com que o filme abre mão do que tinha de peculiar para forçar a enésima versão de algo já visto e testado é outra dica de que talvez nada de muito empolgante se passava nos bastidores de suas decisões artísticas.

Quanto ao talento de Greengrass na condução do filme, isso resiste. O diretor não decepciona quem está esperando seu habitual arsenal de tensão e construção dinâmica de retratar a ação, mesmo repetindo enfoques alheios. A decepção vem do roteiro e da forma como o próprio autor permitiu embarcar nesse produto que poderia ter sido assinado por qualquer outro, com essas escolhas. É a moldura que faz a diferença em 22 July e não o percurso. O estranho é constatar que o roteirista do filme se chama Paul Greengrass, ou seja, não houve conflito; o diretor realizou o filme que desenvolveu. Seu trabalho como diretor, aliado ao belo ator que Anders Danielsen Lie é, são superiores ao roteiro que ele mesmo escreveu, e que coloca em discussão suas reais motivações quanto ao projeto, que parece encomendado e dramaticamente engessado.

Comentários (0)

Faça login para comentar.