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Críticas

Cineplayers

Inconsistentes porém necessários.

7,0
A Balada de Buster Scruggs não é a primeira vez que os irmãos Coen olham para a história americana. Aliás, boa parte de seus filmes são de época. A primeira metade do século é contemplada por Ajuste Final, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?, Barton Fink - Delírios de Hollywood, O Homem Que Não Estava Lá e Ave, César!. As transformações da segunda metade podem ser vistas em Inside Llewelyn Davis - Balada de Um Homem Comum, Um Homem Sério e principalmente Onde Os Fracos Não Têm Vez. Juntos, esses oito filmes contemplam das décadas de vinte a oitenta.

Enquanto isso, o período do mito de formação americano por excelência - a conquista do Oeste - era representado apenas por Bravura Indômita, conto de vingança em que o arquétipo do pistoleiro solitário e pouco adaptado à sociedade era trampolim para os Coen destilarem seu humor peculiar e sua visão de mundo pungente. Agora, sobre o mesmo universo, o filme-antologia dividido em seis histórias curtas diferentes expande o olhar sobre o mito de formação do país da maneira inimitável de Joel e Ethan.

Inicialmente idealizado como uma série de televisão para então ser editado como um filme de longa-metragem, A Balada de Buster Scruggs carrega aquele olhar afetuoso mas ao mesmo tempo cínico e melancólico que os irmãos diretores e roteiristas têm sobre seus personagens, onde é possível ver o que há de melhor sobre sua maneira de construir sua narrativa.

Apresentado como uma história sendo lida em um livro (com a passagem marcada por uma mão virando páginas de um velho livro), o filme, apesar de episódico, parece transitar entre a comédia ácida e o drama destruidor que marcou a carreira da dupla. Em sua primeira metade, as histórias “The Ballad of Buster Scruggs” e “Near Algodones” é o que esperamos das bizarras inversões de expectativas do Coen, seja sobre o fatal cowboy cantor e suas períciais letais com a pistola interpretado de maneira caricata por Tim Blake Nelson no primeiro segmento ou o assaltante azarado feito por James Franco.

Inversões de expectativas porque só os Coen mesmo para conseguir casar um musical que exagera no quesito camp/brega do musical bem como banca corajosamente uma violência grotesca. A união do número cômico com o detalhismo dos efeitos especiais, as canções entoadas divertem por evocar não um Oeste real, mas imaginado. De outra forma, o segundo segmento com Franco também vai na mesma linha mas revelando-se uma pérola de humor negro, onde os Coen testam suas habilidades de brincar com temas pesados - assaltos, tiroteios, enforcamentos, massacres humanos - e criar uma espécie de “pastelão sangrento” que pode não satisfazer por um final muito abrupto - mas vendo a vida como eles veem, fútil e sem significado, e pior, triste de derramar lágrimas e patética de dar risada, até que faz sentido. 

A história “Meal Ticket” dá uma guinada em outra direção, sendo uma tristíssima história sobre um genial ator sem braços nem pernas carregado para lá e para cá por seu brutalizado empresário. Fora os constantes recitais do ator em sua barraca itinerante, praticamente não há mais diálogos, e nenhum entre os atores Harry Melling e Liam Neeson. Suas coexistências miseráveis compõem uma narrativa poética, um pequeno teatro de crueldade, mais plástico que realista, que herda o final abrupto da história anterior mas finalmente pavimenta o caminho para a típica melancolia “coeniana”. 

Nas três narrativas seguintes, “All Gold Canyon”, “The Girl Who Got Rattled” e “The Mortal Remains”, os Coen abarcam mais de todas as narrativas possíveis de faroeste, falando sobre a corrida do ouro no primeiro e a migração de pessoas em busca de oportunidades no segundo. Tom Waits como o prospector na primeira dos três últimos contos é, bem, Tom Waits - a figura resmungona, esguia e experiente, capaz de atos nobres e baixos, de violência e contemplação, que torna interessante uma história com praticamente um personagem, obsessivo em sua busca com apenas a natureza à sua volta. É um exercício de contemplação dos cineastas - da terra, do homem, do que é inerente ao seu caráter. Incorrigível, apesar de tudo, aproveitando da persona única de uma lenda viva.

Já os dois últimos são alguns dos momentos mais sombrios. No penúltimo, a integrante de uma caravana Alice Longabaugh perde tudo - irmão, posses, cachorro e até mesmo oportunidades, ao não conseguir livrar-se do passado que sempre a acompanhou. Chama atenção o uso mais convencional da música nesses momentos, catártica e triste, sem o uso de ironia típica dos irmãos - seja ela ridícula ou amarga. Quase um anti-John Ford ou anti-Howard Hawks, mestres de um faroeste idealizado, pois o espírito humano pode persistir muito, mas nem sempre consegue. Talvez o mais perto do melodrama que eles já criaram - à sua própria maneira, é claro.

Já “Mortal Remains” brinca com fantasia e horror para fazer uma releitura da peça de Sartre “Entre Quatro Paredes” do Velho Oeste. Filtros abundam da maneira mais falsa possível, evidenciando a filmagem em digital do filme, e o roteiro traz o que sempre chamou atenção em seu cinema: os diálogos ordinários que em um simples acidente de percurso (uma discordância, frase fora de contexto) não demora a escalar para um absurdo, onde convicções disparadas se inflamam e se retraem e, com personagens praticamente isentos de ação física, é todo pela representação e encenação dos diálogos, onde a forma - ritmo, entonação, variações - importam tanto quanto a história das pessoas presas em seus próprios mundos, incapazes de transgredir do próprio ridículo e incapazes de sentir empatia pelo próximo. Muitas vezes triste e silencioso, mas também frequentemente tenso e hilário.

Talvez o maior problema seja, justamente, a disparidade entre os segmentos, com outros muito mais compostos e significativos e outros mais abruptos e anti-climáticos, tampouco organizados em uma ordem que parece estimular os espectadores. Mas os Coen expandem sua visão de mitos formadores, suas questões sobre a violência e a crueldade inescapável confrontados com espíritos inquebrantáveis. Esse é outro caso de percebermos onde questões dramatúrgicas perseguidas por eles desembocam em análises do passado que dizem muito sobre os dias de hoje. Como percebemos o patético, o melancólico, o brutal, e como eles são ressignificados com tanta frequência. E, justamente por isso, mesmo com um filme menos consistente, conseguem ainda ser um dos nomes mais consistentes e diferenciados da atual Hollywood.

Comentários (3)

Josiel Oliveira | quinta-feira, 03 de Janeiro de 2019 - 16:32

Caramba Brum, você achou meia boca?
Logo você que é um cara que, pelo que eu percebo aqui, curte pra caramba os irmãos Coen.
Talvez mais que eu até.
Eu pirei demais nesse filme!
E acho que com o tempo e uma revisão daqui uns anos você vai curtir mais.
Lembrei até daquele tópico que eu abri falando de contos, da frase do Cortazar que o romance te vence por pontos e o conto por nocaute.
Esse filme tem uns nocautes muito bem dados! Achei todos muito bem estruturados na pegada narrativa de conto.
O primeiro, do Buster Scrugs, me lembrou na hora o Lucky Luke das HQs antigas, fui pego total de surpresa.
O terceiro é muito foda, exatamente por essa crítica ao artista vs. Empresário/público geral que o Kleber Mendonça Filho tinha tuitado. Uma pancada ácida muito atual!
O quarto do Tom Waits então, é o melhor! Todinho narrado com maestria, aquele começo do homem chegando e espantando a natureza... Muito foda!

Josiel Oliveira | quinta-feira, 03 de Janeiro de 2019 - 16:32

O último é muito clássico pegada de conto, de muito antes dessa modinha de plot twist do caramba! rsrs
Todos os contos são muito bons, sem exceção. Terminava um e eu já tava ansioso pelo próximo.
As passagens na pegada clássica virando a página do livro style demais!!
E caramba, toda a riqueza estética do conjunto da obra.. é um filme que tem tudo pra envelhecer muito bem, o tempo vai reforçar sua importância.
Dá uma outra chance pra ele daqui uns anos que ele merece!

Josiel Oliveira | sexta-feira, 04 de Janeiro de 2019 - 16:20

Sim, total respeito à opinião do Brum.. que pra minha surpresa é também a opinião da grande maioria aqui no cineplayers
Foi só pra dar uma cornetada mesmo kkk e falar que futuramente merece uma segunda chance
Mas legal, eu vi que você tb é um dos poucos defensores do filme aqui, tamo junto!

O Ave César não achei vexame tb não. Eu gostei, também achei bem rico esteticamente, me diverti, e achei a cena da reunião dos comunistas antológica, algumas esquetes bem boas... mas esse acho bem compreensível quem não curtiu, é um filme menor mesmo e o elenco todo parece que não rolou bem, aí a coisa como um todo ficou meio esquisita mesmo.

Agora o Buster Scrugs acho mais difícil entender como tanta gente fã dos Coen não gostou.

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