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Críticas

Cineplayers

A mise-en-scène de Nicholas Ray transforma um material de segunda classe num filme que beira a perfeição.

7,0

É possível um filme imperfeito se aproximar da perfeição? Resposta: sim, se ele for dirigido por um cara chamado Nicholas Ray. E A Bela do Bas-Fond é a prova mais evidente disso.

O ano era 1958. Desde Juventude Transviada, lançados três anos antes, o diretor não emplacava nenhum sucesso de público. Seus filmes seguintes, em especial Delírio de Loucura, lançado em 1956, e Amargo Triunfo, de 1957, embora reconhecidos pela crítica – mais a francesa do que a americana – como verdadeiras obras-primas, não despertaram o interesse do conservador público ianque daquela época. Sem ninguém interessado em bancar sua próxima produção, Nicholas Ray aceitou trabalhar sob encomenda para a MGM – seu primeiro e único trabalho para o grande estúdio –, sob a coordenação de Joe Pasternak, responsável pelas produções de segundo escalão.

O roteiro que foi entregue a Ray – de autoria de George Wells, por sua vez baseado numa história de Leo Katcher – era uma estranha mistura de filmes de gângster e musical. A improvável combinação era ainda mais acentuada pelo casal de protagonistas que fora escolhido – Robert Taylor e Cyd Charisse. Taylor fora um dos maiores galãs da era de ouro da MGM,  astro de filmes durante as décadas de 1930 (Sublime Obsessão e A Dama das Camélias), 1940 (A Ponte de Waterloo e Estrada Perdida) e 1950 (Quo Vadis e Os Cavaleiros da Távola Redonda). Mas àquela altura dos acontecimentos, aos 47 anos, ele já desistira de ter que provar a cada novo trabalho que era mais do que um simples rosto bonito. Por sua vez, Charisse chegara ao estrelato por meio do filão dos filmes musicais, gênero no qual a Metro sempre foi expert. Dotada de um par de pernas de cair o queixo, a atriz vivia um conflito parecido com o de Taylor. Aos 37 anos, ela sabia que sua beleza não era eterna e que, por mais que tentasse provar o contrário, o público não estava disposto a avaliá-la pelos talentos acima da sua cintura.

Mesmo desconfiado que aquilo podia não dar liga, Ray, mesmo a contragosto, foi em frente. Nascia ali A Bela do Bas-Fond, filme que, se não está entre os seus melhores, certamente é um dos mais belos.

Logo na primeira cena, A Bela do Bas-Fond situa-se no tempo e no espaço. Estamos em Chicago, nos primeiros anos da década de 1930. Época da lei seca e dos mafiosos. Numa panorâmica à esquerda, a câmera nos mostra as luzes de neon de uma casa de espetáculos. Saberemos mais tarde que seu proprietário é o gângster Rico Angelo (Lee J. Cobb). Fusão para o interior do recinto e já nos deparamos com um palco repleto de garotas, todas elas bem vestidas, que se apresentam para um público majoritariamente masculino. Na primeira fileira, um homem escolhe algumas das mulheres, como se as estivesse selecionando para um concurso. O palco parece estar completo quando a última e a mais bela das dançarinas entra em cena. Sobre ela, num belo enquadramento em cinemascope, surge o título original do filme: Party Girl. Em menos de dois minutos de projeção e sem qualquer diálogo, Ray já identificou sua protagonista. Ela se chama Vicki Gaye (Charisse).

Gaye é uma mulher experiente e pragmática. Aos 15 anos, ainda inocente, sofrera sua primeira frustração sentimental. Passou a ver os homens com desconfiança, um mero instrumento para se alcançar outros objetivos mais mundanos, como dinheiro e sucesso. Gaye divide seu quarto com uma das dançarinas. A moça está envolvida com um homem casado. Há três semanas, ela aguarda o seu telefonema que não vem. A garota ainda tem a esperança de que ele possa, um dia, separar-se da mulher. Gaye vê na sua colega o reflexo da sua própria imagem. Com conhecimento de causa, ela a alerta: "Querida, lembre-se: é apenas um homem..."

As noites de Gaye são longas. Após os espetáculos e mediante um cachê de 100 dólares, ela faz horas extras em festas e coquetéis como acompanhante de importantes engravatados da região, que vão de políticos a criminosos. Gaye prefere ver o lado bom desse serviço, um espécie de dinheiro que vem sem muito esforço e – o mais importante – nenhum envolvimento amoroso. Basta ter paciência e agüentar a bebedeira do homem a que se está acompanhando.

Numa destas festas, Gaye conhece o advogado Tommy Farrell (Taylor). Ela pede que a leve de volta para casa. No fundo, o que ela quer é livrar-se de Louis Canetto (John Ireland), um dos vários gângsteres do recinto e que já conta com sua companhia para mais tarde. Farrell não se mostra muito interessado no início, mas acaba aceitando o pedido de Gaye. Ele se levanta, pega uma bengala e anda com dificuldade. Gaye espanta-se. Aquele homem que se mostrara tão poderoso, rodeado por inúmeros poderosos, naquele instante revelara uma fragilidade que ela jamais imaginara.

Farrell sofrera um acidente que o deixara com a limitação física aos 12 anos de idade. Após uma infância difícil, ele é tirado das ruas por Rick Angelo, conhecido na vizinhança como O Rei das Crianças. Farrell vê em Angelo a figura paterna ideal: presente, poderoso e protetor. Não demora a perceber que suas dificuldades de locomoção o obrigarão a se destacar em outra frente. Escolhe a advocacia. Torna-se o melhor profissional de Chicago, uma espécie de Tom Hagen, personagem de Robert Duvall em O Poderoso Chefão. Sua meta se concretiza. Passa ter os poderosos em suas mãos. Contudo, ao mesmo tempo que optou pelos atalhos mais convenientes para atingir o sucesso, guarda um pouco da sua dignidade e evita qualquer envolvimento com os criminosos que defende.

Por mais clichê que possa parecer, Gaye e Farrell são duas personalidades que se complementam. Ambos não se orgulham do trabalho que exercem, mas sentem-se reconfortados quando percebem que o sentimento é mutuo. Isso fica claro na combinação da sequência que antecede e a que vem logo após o julgamento de Louis Canetto. Na primeira, Gaye procura Farrell em seu escritório. Ela pede a ele que devolva a Canetto o dinheiro que dele recebera durante a festa de Rick Angelo. Quando indagada por Farrell sobre os motivos que a levaram àquele gesto, ela responde: "Talvez eu queira que você tenha uma melhor opinião a meu respeito". Para quem aprendeu a colocar em segundo plano o orgulho pessoal,  a frase é significativa. Na segunda, os pólos se invertem e é Farrell que, ao explicar as técnicas sentimentais de que se utiliza no Tribunal do Júri, justifica a baixeza de seu trabalho: ele acentua sua dificuldade de locomoção, arrastando mais a perna defeituosa; pede a um dos jurados que segure sua bengala; apóia-se na bancada; lança mão de um antigo relógio, supostamente um presente de seu pai, e que, apesar de velho, mantém a precisão do horário.

No fundo, Farrell sabe que também está tentado melhorar sua imagem perante Gaye. O fecho destas sequências vem logo em seguida, quando Farrell, nervoso por não discutido com Gaye, joga o relógio em direção a Canetto e sugere que ele o guarde como lembrança do julgamento. O paralelo é evidente: ao livrar-se do relógio, Farrell tenta liberar-se daquilo que, na verdade, lhe causa vergonha, da mesma forma que Gaye procedeu a pedir que ele, Farrell, devolve-se o dinheiro recebido pelo serviço de acompanhante. Até aquele instante em suas vidas, nenhum dos dois tivera problema com esses eventos. Para Farrell, o uso do relógio não passava de uma estratégia lícita de defesa. Para Gaye, o dinheiro era a remuneração justa por um trabalho como outro qualquer. Para ambos, o relógio e o dinheiro eram a prova do quanto eram bons em seus respectivos ofícios. No entanto, a partir do momento em que se conheceram, ambos passaram a ter uma segunda opinião sobre o assunto.

Além disso, há a evidente simbologia dada pelo fato de Farrell ser manco e Gaye, dançarina. Em outros termos, a fragilidade de um é a fortaleza do outro. Eles percebem que, juntos, formam uma dupla capaz de vencer obstáculos intransponíveis se tentassem fazer o mesmo isoladamente. O amor que nutrem um pelo outro lhes dá coragem para colocar em prática seus desejos. Ela deixa de lado a rejeição pelo sexo masculino, e entra de corpo e alma em um novo relacionamento. Ele, por sua vez, anuncia sua aposentadoria a Rick Angelo.

Do lado de Farrell, essa metáfora é ainda mais explorada, quando ele viaja à Europa em busca de um tratamento para sua deficiência. Se levadas ao pé da letra, as sequências no hospital beiram ao ridículo. Particularmente, há de se fazer uma outra leitura. A cura que Farrell vai buscar não é essencialmente física, mas sim espiritual. Prova disso está na simbologia da bengala. Sua dependência ao objeto está associada ao medo interior do personagem de tentar a vida por conta própria, provavelmente por sentir que essa ruptura representaria uma traição com aquele que, na prática, exerceu o papel de pai. O relacionamento com Gaye é o primeiro passo de Farrell em busca de uma identidade própria. A viagem à Europa e o início do tratamento, um mero desdobramento. Ao retornar, ele está curado. A bengala não é mais necessária. O filho, no inconsciente, matou o pai e está pronto para seguir seu rumo. Poucos filmes de Nicholas Ray comportam uma análise psicológica dos personagens tão profundas.

Do ponto de vista cinematográfico, A Bela do Bas-Fond, assim como em outros filmes do diretor, é repleto de achados visuais. Por exemplo, temos a cena da delegacia, em que um policial, filmado apenas pela sombra, conversa com Gaye, de frente para o público. No extra-campo, ouvimos a voz de Farrell exigindo que a autoridade não faça mais perguntas à sua cliente. A sombra do policial se vira em direção à voz e concorda com o pedido. Num único plano, com a câmera estática, Ray decupa a sequência da forma mais simples, direta e eficiente possível. Em outros momentos, Ray faz elipses inteligentes que, de tão sutis, correm o risco de passar despercebidas. Uma delas está no resultado do julgamento de Canetto, dado pelo cartunista do Tribunal. Outra se vê na cena em que Farrell volta à sua casa em que deixara Gaye esperando, após ter sido chamado pelo seu chefe Rico Angelo. Ao recebê-lo, Gaye veste exatamente mesma roupa mas com um detalhe importante: ela está descalça. Nos filmes de Ray, a mise-en-scène realmente fazia toda a diferença.

Assim como em Johnny Guitar, Juventude Transviada e Delírio de Loucura, em A Bela do Bas-Fond vê-se novamente o emprego da cor com finalidades dramáticas. Reparem no vestido vermelho usado por Gaye quando ela volta da delegacia. Cansada, ela deita sobre o sofá, também vermelho. O impacto visual é fortíssimo. Pode-se dizer é a partir da visão daquela mulher, ao mesmo tempo sensual e indefesa, carnal e angelical, uma espécie de bela adormecida por fora, mas carente por dentro, que Farrell sentiu que estava começando a se apaixonar.

Por mais improvável que fosse a reunião de Robert Taylor e Cyd Charisse, pode-se dizer que muito da qualidade de A Bela do Bas-Fond vem da interpretação do casal. Taylor opta por uma atuação suave, charmosa, sem histrionismos, aquilo que os americanos chamam de low-key, e que se encaixa perfeitamente ao personagem. Já Charysse ressente-se de ser uma figura mais passiva dentro da trama, apenas reagindo ao que acontece com Farrell. Mas nas oportunidades que o roteiro lhe dá, sai-se bem (esqueça as sequências de dança, inseridas a fórceps dentro da trama, com o intuito obvio de aproveitar a fama de Charysse). O romance dos dois é desenvolvido sem pressa e, por isso mesmo, perfeitamente assimilável pelo público. A combinação de personagens humanos defendidos por atores pra lá de carismáticos faz com que passemos a torcer e a nos importar com o sucesso daquele relacionamento e não apenas com um deles isoladamente.

Por fim, não se pode deixar passar batido o personagem de Rick Angelo, defendido por Lee J. Cobb. Deliciosamente exagerado, numa composição que mistura a sabedoria de um Vito Corleone com o pavio curto de Tommy DeVito (personagem de Joe Pesci em Os Bons Companheiros), o ator transmite toda a loucura e podridão daquele universo criminoso. Duas seqüências merecem destaque: o tiro que ele dispara no retrato da atriz Jean Harlow e que acabara de falecer, e toda a cena final, quando Angelo, com o paletó por cima dos ombros, lembrando a figura de Napoleão, anuncia o fim do seu reinado.

A Bela do Bas-Fond é – injustamente – um dos filmes menos conhecidos da filmografia de Nicholas Ray. Mas é a prova incontestável da sua extrema perícia no uso da cor, na disposição cênica dos personagens e na obtenção do máximo de efeito do cinemascope. Sem Ray no comando, A Bela do Bas-Fond corria o risco de cair no ridículo. Com ele, passou a beirar a perfeição.

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