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Críticas

Cineplayers

As questões entre vida e morte.

6,0

Marco Bellocchio é um dos poucos cineastas atuais que sabem cutucar feridas e discutir temas delicados em seus filmes sem cair na tentação de fazer apenas um filme polêmico chamativo, porém vazio. Em um dos seus trabalhos mais recentes, Vincere (idem, 2009), abordou política, relações familiares e loucura sem jamais parecer apelativo ou gratuito. O mesmo aconteceu quando decidiu chocar um personagem ateu com um conflito familiar que envolveria enfrentar alguns dogmas da religião católica em A Hora da Religião (L’ora di religione, 2002). A religião, que parece ser um dos maiores tabus discutidos pelo diretor, também é uma das peças-chave em seu novo trabalho, A Bela que Dorme (Bella addormentata, 2012), filme que visa retratar através de múltiplas histórias a complicada questão da eutanásia.

O centro do redemoinho de personagens e situações que envolvem o tema principal é o caso real da italiana Eluana Englaro, uma moça que entrou em estado vegetativo depois de um acidente de carro, e permaneceu assim por inacreditáveis 17 anos. Seu pai lutou contra Deus e o mundo para conseguir a liminar que permitisse o desligamento dos aparelhos, uma batalha de anos que provocou inúmeros protestos e discussões judiciais, até que por fim conseguiu a permissão. Obviamente, com o Vaticano ali do lado, houve também o levantamento de discussões morais e religiosas, e é nesse ponto que Marco Bellocchio faz sua grande intervenção.

Em volta desse acontecimento real, Bellocchio constroi os conflitos de seus personagens fictícios, entre eles um senador em dúvida se deve ou não aprovar a liminar no seu partido no senado, levando em conta um caso do passado envolvendo sua própria filha, e uma ativista pró-vida que se apaixona por um simpatizante da eutanásia. Isabelle Huppert entra na trama com uma beata que se esquece de toda sua vida, seus amigos e seus familiares, apenas para cuidar da filha em coma, enquanto acredita piamente que Deus um dia vá acordá-la.

Infelizmente, a habilidade do diretor em lidar com temas delicados parece ter sido sabotada pela ideia de fazer um filme de múltiplas histórias. Assim como acontece em Crash - No Limite (Crash, 2004), A Bela que Dorme é sufocado por situações forçadas, jamais críveis, demasiadamente planejadas para se encaixarem em um uníssono tom de conclusão. Não há sutileza, só polêmica e sensacionalismo, tal qual houve durante a cobertura da mídia no caso real de Eluana. Mesmo sob o ponto de vista religioso da obra há certo desconforto, e o principal motivo disso parece ser a indecisão de seu diretor.

Ao invés de se posicionar, Bellocchio opta por transitar entre as diversas questões sem jamais dizer a que veio. Sem a coragem e a maturidade apresentadas nas já citadas obras Vencer e A Hora da Religião, o cineasta parece perdido, como se não estivesse convencido de nenhum dos argumentos, prós ou contras, que ali discute. Se a intenção era se manter em um campo neutro, deixando por conta do público decidir que lado tomar, talvez tivesse sido necessário um tom mais sóbrio e menos forçado. Ecos de Mar Adentro (idem, 2004), são usados como guia por Bellocchio, mas no fundo acabam assombrando a produção, ao invés de auxilia-la.

Os acertos de A Bela que Dorme estão em alguns rápidos momentos em que uma questão muito mais interessante é levantada: há mesmo a chance de uma pessoa voltar do coma, mesmo depois de anos? Vale a pena se dedicar a uma pessoa nessas condições caso haja a remota esperança? Embora apenas flerte de longe com essas questões, o filme acerta quando o faz, assim como Almodóvar fez divinamente em Fale com Ela (Hable con Ella, 2002). Nesse momento, já não importam os questionamentos morais sobre o poder de decidir sobre a vida de uma pessoa querida, mas sim a perspectiva prática de um dia talvez, de fato, surgir a possibilidade dessa pessoa voltar a recobrar a consciência.

A Bela que Dorme procura ir longe, se aprofundar em um assunto complicado, onde jamais existirá um consenso, seja moral, profissional, ou mesmo ético. Poderia ter sido bem mais se conseguisse evitar as armadilhas mais óbvias para filmes com temas polêmicos como esse. Estranho ver um diretor já experiente como Bellocchio cair nesse tipo de abordagem geralmente presente em obras de diretores principiantes ou pueris. Por conta disso o trabalho escorrega naquilo que mais era temido: começa e termina sem nada acrescentar a uma discussão tão polêmica como a eutanásia.

Comentários (1)

Marcelo Leme | quinta-feira, 01 de Novembro de 2012 - 11:18

Queria ter visto esse. Belo texto.

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